27 de agosto de 2020

Didier van Cauwelaert, uma educação de fada trazida para a vida real

« Je suis tombé amoureux de deux personnes en même temps, un vendredi matin, dans un bus d´Air France. Elle est blonde, en tailleur noir, l´air à la fois concentré et absent. Il est tout petit, avec de grosses lunettes rondes à monture jaune et un chasseur bombardier Mig 29 de chez Mestro dans la main droite. De son autre main il s´accroche à la jupe de sa mère, qui descend de quelques millimètres à chaque secousse. Inconsciente du spectacle qu´elle offre, elle laisse aller son regard au-dessus des têtes d´hommes d´affaires qui suivent machinalement la progression du strip-tease commencé par son petit garçon. »
Didier van Cauwelaert, L'Éducation d'une fée (2000)

Veio ter comigo de livre e espontânea vontade, em surdina, em edição de bolso, sem que eu o chamasse ou suspeitasse sequer da sua existência. Estou a referir-me a um dos mais premiados autores franceses de origem belga, Didier van Cauwelaert, e a um dos muitos romances que já deu à estampa, A educação duma fada (2000). O acaso tem destas surpresas que me enriqueceram parte destas férias de verão. De mão em mão veio parar à minha posse como proposta de leitura agradável. E bom ter uma família francófona que gosta de caminhar pelo interior dos livros e ouvi-los falar no idioma original. Assim lá vamos enriquecendo as nossas bibliotecas pessoais a contento de todos.

Emotiva, surpreendente, paradoxal, inspirada e pedagógico à sua maneira, este conto de fadas para adultos vivido por uma criança de oito anos é-nos transmitido pela junção acertada de dois relatos autobiográficos com final feliz, como convém ao género convocado para partilhar a história, apesar da voz masculina dos capítulos ímpares não se casar com a voz feminina dos capítulos pares. Muito pelo contrário. Ela é só a tal fada de carne osso trazida dos livros infantis para a vida real do dia-a-dia contemporâneo. Esse ser intermediário que ajuda a traçar o destino dos seus protegidos logo após o nascimento e os acompanha pela vida fora. Em termos da tradição oral corresponde à madrinha de batismo da fé cristã e opõe-se, pela mesma ordem de ideias, às bruxas e às madrastas sempre pérfidas do imaginário popular.

A contracapa do exemplar por onde viajei nestes dias quentes de agosto e com o mar a perder de vista convida-nos a mergulhar de rompante na trama discursiva, através da formulação de três perguntas sem resposta, retomadas aqui por palavras minhas, visto a indiscrição do despertar dos mistérios ter sido cometido com anterioridade e consentimento do criador externo da fábula. Saber qual o procedimento a seguir, quando alguém decide deixar-nos porque nos ama. Saber como salvar o casamento dos pais quando se é ainda de tenra idade. Saber de que modo uma jovem sem rumo definido na vida se transforma numa fada, só porque uma mente infantil inocente assim decidiu acreditar. As questões só serão resolvidas no interior das narrativas cruzadas que constituem a urdidura do texto.

A motivação para penetrar nos segredos guardados nas páginas do livro é aliás implementada logo na capa desenhada por Bruno Mallart. Todos as imagens alusivas que vamos vendo e tentando conjugar com o título de sonoridade singular vão-se formando no nosso espírito, como se duma varinha de condão se tratasse. Os resultados obtidos estão longe de coincidir por completo com o rumo da intriga original mas ajudam-nos a situar parte do cenário em que a ação se desenvolve. O carrinho de compras, os códigos de barras, a máquina registadora com braços pejados de pulseiras e pernas a correr numa passadeira de ginásio remetem-nos para um estabelecimento de venda ao público e para a funcionária de serviço à cobrança das compras, uma presumível admiradora de Gide e amante das escritas manuscritas em folhas de papel A4. Trata-se da tal fada na sua dupla função de narradora dum diário pessoal e caixa duma grande superfície citadina. Mais difícil será decifrar a função desempenhada pela bandeira triestrelada da Síria, ao invés da tricolor francesa, que ato contínuo aliamos ao espaço privilegiado onde tudo eventualmente se passa. A junção de registos verbais e iconográficos permite-nos identificar os restantes atores em palco. O cliente apressado do supermercado e o rapaz que brinca com o avião de papel ao segundo efabulador e ao terceiro interveniente referido. Quanto à ave representada de perfil e semitapada pelo edifício cilíndrico, podemos avançar estar associada a uma ornintóloga e quarto elemento de protagonistas envolvidos no enredo.

As dicas estão dadas. Entre a capa e a contracapa há um mundo de fantasias a descobrir. A do adulto que fabricava jogos de brincar porque lhe haviam roubado a infância e a da criança que traz para o mundo real o mundo imaginado dos contos de fadas. Agora é só por os pés-a-caminho e as mãos-à-obra. As leituras fazem-se lendo todas as palavras que as histórias nos contam. As infantis e todas as demais, que em termos literários todas elas têm a mesma importância e desempenham o mesmo papel intemporal de instruir e divertir miúdos e graúdos.

3 comentários:

  1. Muito interessante, Prof! Uma lufada de ar fresco após a invasão do mundo literário por livros de imaginação exacerbada em mundos avatares...

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    1. O mundo retratado neste romance é um mundo bem concreto dos nossos dias apesar da presença duma fada imaginada por uma criança de 8 anos, feita de carne e osso como nós ou para ser mais preciso de papel e tinta.

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  2. Adoro este livro.

    Fiquei alegremente surpreendida com esta análise de descorberta e reconhecimento. Obrigada.

    A imaginações felizes! :D

    Ana Gonçalves

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