« Au lendemain du 4 août, la bataille appartient déjà au passé, mais pas encore pour les Portugais restés au pays. Plus qu'au-jourd'hui, où reporters de la presse écrite, cameramen de la té-lévision et détenteurs de téléphone mobile assistent en direct aux événements qu'ils nous présentent, les " nouvelles " étai-ent alors des relations, des récits différés d'actions révolues, Qu'apprit-on, au Portugal, de la bataille du 4 août ? »Lucette Valensi, Fables de la mémoire: La glorieuse bataille des trois rois (1992, 2009)
Encontrei na pequena livraria do Museu Judaico de Belmonte um livro que procurava em vão há uma eternidade, alegadamente por estar há muito esgotado, apesar de Lucette Valensi já ter visto as suas Fables de la mémoire: La glorieuse bataille des trois rois (1992) publicadas em duas edições francesas e outras tantas portuguesas. Fiquei-me com o único exemplar disponível no local, a versão mais recente da obra, preparada pelas Éditions Chadeigne – Librairie Portugaise, com o apoio do Centre Culturel Calouste Gulbenkian de Paris. Comprei-o há dois anos mas só agora lhe peguei e tenho vindo a seguir os relatos da malfadada incursão bélica do Rei de Portugal no Reino dos Algarves de além-Mar em África, bem como de todos os acidentes extraordinários, associados ao evento. Nela não faltam visões, vozes, aparições, revelações, vaticínios, sinais, alucinações, prodígios, presságios, histórias, lendas, fábulas, milagres, trovas, construções mitológicas e tudo o mais que a memória dos povos foi gizando ao longo dos séculos sobre o maior desastre da História portuguesa, a batalha de Alcácer-Quibir, travada a 4 de agosto de 1578, aquela em que morreram três soberanos: Dom Sebastião, rei de Portugal; Abd al-Mâlik, sultão legítimo de Marrocos; e Moulay Muhamed, o sultão destronado e aliado do exército invasor lusitano. No final da contenda, será al-Mansûr, o novo senhor do Sultanato Saadiano, a receber de imediato os louros da vitória e, de certo modo, à distância de dois anos, Filipe II de Castela, ao tornar-se Filipe I de Portugal, depois de ter herdado, comprado ou conquistado para os Áustrias a Coroa dos Avis.
Cruzei-me com a Matéria Sebástica muitas e variadas vezes durante o meu percurso académico, enquanto discente/docente de Línguas, Literaturas e Culturas. Ainda me lembro da popularidade alcançada pelo Quarteto 1111 com A lenda de el-rei Dom Sebastião (1968), uma balada feita ao gosto saudosista da época a recontar de modo cantado os infortúnios d'O Desejado. Depois há ainda os ensaios políticos, os filmes alusivos, os documentários televisivos, as teses académicas, as peças de teatro, a ópera, as poesias, os artigos de revistas, os livros. Destaco um único romance, as Dix mille guitares, composto em 2010 por Catherine Clément, que recenseei para o Pátio de Letras em 2011, repus aqui neste espaço em 2017, reflexão reduzida duma comunicação mais extensa apresentada em 2011 na Uniwersytet Łódzki (Polónia), e publicada em 2014 pela Acta Universitatis Lodziensis, parcialmente disponível na Net. Acrescento a terminar uma conferência que proferi em 2017, na Association Culturelle Portugaise Alma Lusa sediada em Rennes (França), onde a temática foi tratada com todos os pormenores disponíveis. Em ambos as ocasiões, senti vontade de consultar o estudo da professora franco-tunisina de origem judaica, Lucette Valensi, que, como referi, só viria a encontrar numa pequena vila histórica da Beira Baixa em 2018, obra que não consegui vislumbrar nas mais reputadas livrarias da capital da Bretanha.
Nas cerca de quatro centenas de páginas do texto, a investigadora procede à resenha exaustiva de todas as relações investigadas e referentes ao tema d'O Encoberto, as anónimas e as assinadas, as manuscritas e as impressas, as portuguesas e as marroquinas. Menciona também as perdidas, os murmúrios, gemidos e silêncios, através dos testemunhos documentados pelas memórias escritas e orais, individuais e coletivas, imediatas e longínquas, sobreviventes à voragem do tempo. Desenvolve a gloriosa Batalha dos Três Reis, recorrendo às lembranças duma grande carnificina entre cristãos, judeus e muçulmanos. Através dessas Fábulas da Memória, as tais que começaram a ser contadas logo após a contenda e têm vindo a repetir-se há mais de quatro centúrias, encontram-se distribuídas por dez capítulos, enquadradas por uma Introdução e uma Conclusão, secções canónicas obrigatórias neste tipo de trabalho, a que não falta, também, um curto Prefácio e uma extensa Bibliografia, para além dum muito completo aparato crítico de Notas, registadas a duas colunas. As diversas versões de vitória/derrota do combate e das suas repercussões na formação do Sebastianismo, entendido como o mais enraizado mito messiânico ou do homem providencial de toda a história cultural portuguesa, porque assente no regresso dum rei salvador do país.
Em 1986 ou 87 – se a memória fragmentária dos eventos me não falha –, andei pelos percursos bélicos marroquinos trilhados pelo derradeiro Cavaleiro-Cruzado europeu de feição medieval. Efetuei-o integrado numa viagem turística, sem fins peregrinos, organizada por um pequeno grupo de amigos. Entre Ceuta e Fez, fizemos escala em Tânger, Tetuão, Arzila e Larache. Tudo lugares paradigmáticos da Era Imperial portuguesa, que o guia oficial foi referindo com meias-palavras de circunstância e usando a técnica do politicamente correto. Passámos ao largo de Ksar-el-Kebir sem parar, depois de ter atravessado o Wâd al-Makhâzir, o local da batalha, sem ter avistado a ponte arruinada sobre o rio Oued al-Makhâzir, onde as forças invasoras cristãs foram dizimadas e o aliado rebelde muçulmano se afogou. O aqui e o agora também em que o Mito da Cruzada se converteu no Contramito da Decadência, aquele em que o jovem rei de 24 anos terá perdido a vida ou simplesmente desaparecido, para reaparecer, à boa maneira arturiana, numa manhã de nevoeiro, vindo duma ilha encantada, no seu cavalo real, para reassumir o Trono entretanto ocupado a título pessoal pelo tio materno, Filipe I/II de Habsburgo. E assim a história se fez lenda, e assim El-Rei Dom Sebastião passou de anti-herói derrotado pelo Islão nos labirintos da contenda em herói romanesco e prometido conquistador dum Quinto Império Global para a Cristandade. A crença na vinda dum salvador nacional frutificou e espalhou-se por todo o Império, com especial incidência no Brasil, e chegou até aos nossos dias vestido com as roupagens atuais. Continuamos à espera ansiosa duma vacina milagrosa que nos liberte do novo coronavírus, o Covid-19, que nos devolva a normalidade utópica que usufruíamos antes da pandemia. E como a esperança é a última a morrer, façamos fé que esta recente versão do Sebastianismo tenha pernas para andar e nos venha visitar o mais depressa possível.
Belíssimo texto, Prof! Um tema sempre vivo, explorado pelos escritores ao longo de séculos. O último que li, Fernando Campos, desenvolve em "A Ponte dos Suspiros" a utopia do regresso de D. Sebastião via Veneza, conduzido a Sanlúcar onde Filipe III o teria mandado enforcar e espostejar com o apoio da Inquisição. Utopias que fazem parte da existência humana, por vezes apenas desvendadas após a sua passagem a sucessos do passado, mesmo recente...
ResponderEliminarA questão dos falsos/pretensos D. Sebastião é tratada com bastante pormenor por Lucette Valensi, confrontando os aspetos fortes/fracos de cada pretendente e dando uma listagem dos principais defensores/detratores. Pessoalmente não acredito na sobrevivência do Desejado em Alcácer-Quibir ou que se assim fosse o seu regresso alterasse muito a situação dinástica. O perfil misógino do rei estava traçado e muito dificilmente se alteraria. A subida ao trono do tio acabaria por se dar mais cedo ou mais tarde.
EliminarCorrendo o risco de plagiar o comentário anterior direi, belo texto, mas isso não é de estranhar, vindo de quem vem...
ResponderEliminarObrigado, amigo, boa vontade tua na apreciação dum texto que, apesar de tudo, gostei de escrever e partilhar...
EliminarUm grande texto e muito interessante.
ResponderEliminarGostei da ligação do Sebastianismo com a espera por uma cura/vacina para o C19.
Continue a escrever.
Texto muito interessante, como sempre, Artur. E também, como sempre, cheio de informação e conhecimento. Contente que o nosso passeiozinho a Belmonte tenha para ele contribuído. E, Covid 19 passada, devíamos lá voltar - há mais museus que não vimos e parece que muito interessantes também
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