『「君はこれから世界でいちばんタフな15歳の少年になる」――15歳の誕生日がやってきたとき、僕は家を出て遠くの知らない街に行き、小さな図書館の片隅で』村上春樹、「海辺のカフカ」(2002)
J´appartiens à celui qui me trouve. A frase não é minha nem é uma citação direta do livro que acabei de ler e encontrei há cerca de dois anos em Rennes, num canteiro da
rue Papu, em pleno
Bourg l'Évêque. Não estava sozinho. Sempre à distância duma escassa centena de metros, encontrei outros três, todos eles com a mesma dedicatória desinteressada escrita a lápis na primeira página duma obra diferente do eterno candidato ao prémio Nobel da Literatura. Provavelmente nunca o ganhará. O japonês (tal como o português) não parece ser um idioma muito apreciado pelos académicos de Estocolmo.
Je l'ai trouvé, donc, il m'appartient. Estou a referir-me a Haruki Murakami e a
Kafka à beira-mar (2002), considerada a sua
magnum opus, aquela que me acompanhou no regresso a casa. As restantes ofereci-as às minhas amigas de longa data com quem estava nessa visita matinal ao
marché des Lices,
mesmo ali ao lado
. Ignoro
a
identidade
do/a
doador/a
. Dá para suspeitar gostar do autor, a ponto de o oferecer altruisticamente a quem o encontrasse. A viagem pelas mais de 600 páginas da edição francesa também me satisfizeram e ajudaram a apreciar ainda mais a escrita dum dos mais fascinantes fabuladores dos nossos dias
.
O segundo título que leio deste autor nipónico veio reforçar a ideia da sua obra se filiar no universo do insólito, o que nos leva a recorrer a Tzvetan Todorov* para esclarecer a efetiva envolvência do relato na órbita do Fantástico ou da oscilação entre as explicações naturais do Estranho e as sobrenaturais do Maravilhoso. Digamos que dada a profusão de singularidades reportadas sejamos obrigados a admitir que por uma ou outra razão, todas as categorias definidas pelo estruturalista búlgaro se encontram aqui representadas. Por muito incríveis, extraordinárias ou chocantes que se apresentem ao leitor incrédulo dos nossos dias, a sua vinculação a uma realidade factual ainda que particularmente invulgar é muitas vezes possível. A ausência explícita duma justificação clara do fenómeno registada no texto não afasta a hipótese de ela existir no seu exterior. É verdade que a chuva de peixes e sanguessugas não acontece todos os dias, mas já foi em parte confirmada fora da ficção por uma equipa científica da National Geographic. Mais surpreendente seria admitir a hipótese remota de se estabelecer uma conversação verbal com os gatos ou mental com um cão ou uma pedra, próprio do mundo alternativo da Fábula e do Apólogo, que o semiólogo italiano Umberto Eco** designa de Alotopia.
Outras pistas podem ser aventadas, considerando a possibilidade de se tratar dum romance de iniciação com caraterísticas muito especiais, em que a literalidade textual do narrado perde terreno e se desloca passo a passo para a esfera da alegoria ou da metáfora continuada. Kafka é o nome de empréstimo do jovem protagonista e narrador de primeira pessoa dos capítulos ímpares, um ser introvertido que escolhe o apelido dum dos mais influentes vultos da literatura europeia do século passado, por significar «Corvo» em checo, associado quer à morte, solidão, adversidade e mau presságio, quer ao profano, magia, bruxaria e metamorfose, quer ainda à cura, sabedoria, fertilidade e esperança. Não é também por acaso que o ouvimos dialogar recorrentemente com um rapaz chamado Corvo, amigo imaginário que funciona no relato como alter ego do autobiografado. Este decide abandonar o lar paterno de Tóquio no dia do seu décimo quinto aniversário, dirigir-se a uma cidade distante e refugiar-se numa biblioteca, para escapar a uma profecia trágica de contorno edipiano que lhe fora lançada pelo pai: cometer parricídio e incesto com a mãe e a irmã.
A viagem pelos sendeiros dos mistérios e dos enigmas insolúveis prossegue com os percursos inéditos de vida do protagonista dos capítulos pares, um sexagenário simples de espírito, relatados por um narrador omnisciente de terceira pessoa, descrevendo um circuito de histórias paralelas e alternadas de pendor policial a resvalar para dinâmicas pontuais de horror fantasmagórico ou de simples natureza onírica, dão um maior sentido simbólico ao texto como um todo indissociável e complementar duma caminhada que liga a vida à morte. Contrariamente a Kafka Kamura, cujo processo de formação mal acaba de dar os primeiros passos, Satouru Nakata já se encontra no final de linha a encetar as derradeiras passadas. O Alfa & o Ómega da existência humana. Também ele enceta uma fuga em direção a um destino desconhecido mas que o ajudará a cumprir a sua missão providencial na economia do romance.
Importantes são também os deuteragonistas que, consoante o ponto de vista de quem narra, poderão assumir o papel de adjuvantes ou oponentes actanciais dos coprotagonistas e heróis do relato. Oshima a proteger o mais novo, Hoshino o mais idoso. Destacam-se ainda na floresta labiríntica de episódios convocados, as figuras icónicas de Johnnie Walkers, o criador da mais famosa marca de Whisky do mundo, e do Coronel Sanders, o fundador da Kentucky Fried Chicken, um toque irónico a fazer companhia a muitas outras figuras referidas pertencentes ao universo da música clássica e ligeira, às letras japonesas e internacionais, à filosofia e aos diversos domínios da cultura em geral. Histórias laterais que ficam no segredo dos deuses, para que a leitura do original não seja atabafada pela intromissão de comentários alheios, por muito bem intencionados que sejam ou pretendam ser.
NOTAS
(*) Tzvetan Todorov, Introdução à literatura fantástica. Lisboa: Moraes Editores, 1977.
(**) Umberto Eco, «Os mundos da ficção científica», IN Sobre os espelhos e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989.
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EPÍGRAFE
«"Tu serás o rapaz de 15 anos mais valente do mundo." [...] - No dia em que eu fizer 15 anos, fujo de casa e vou para uma cidade desconhecida e distante, onde encontrarei refúgio numa pequena biblioteca.»