PAUL KLEE (1918) |
Lembro-me de a propósito do «rio Guadiana», referir um hibridismo trilíngue, por derivar de riuus (lat.: rio) uādī (ár.: rio) + ānâ (rom.: rio), i.e.: «rio rio rio». O mesmo se diga da associação «sé-catedral», visto fazer alusão à «cadeira» episcopal duma diocese, vocábulos provenientes do latim sedes e do grego καθέδρα. Um terceiro caso reside ainda no tratamento académico «professor doutor», oriundo de doctor e professor, vocábulos latinos que significam, ipsis verbis, «aquele que ensina».
As redundâncias lexicais aludidas trouxeram-me à memória dois episódios centrados no domínio verbal dos falsos amigos luso-castelhanos, feitos de palavras idênticas com a mesmíssima raiz etimológica, mas com significados distintos. Um deles passou-se comigo na minha primeira viagem a Espanha, quando tive de preencher a ficha de registo num hotel e fiquei perplexo quando tive de indicar o nombre de cuna (= berço, apelido) e o nombre de pila (= pia batismal, próprio).
As fronteiras políticas entre países vizinhos condicionam as fronteiras linguísticas entre idiomas irmãos. As mesmíssimas palavras ganham novos sentidos e valências. Só assim se explica que um mero huevos con salsa, prato espanhol de «ovos estrelados com molho de tomate» se tenha convertido num restaurante português em «ovos cozidos com salsa». O caso passou-se com um casal amigo extremeño que um dia atravessou a raia do Caia e me contou depois a história com muita surpresa no contar.
O meu velho amigo Elviro Rocha Gomes já não está entre nós. Muitos outros como ele já se foram como ele. Agora só moram nas minhas memórias, nas minhas aprendizagens de vida, naquilo em que me tornei e moldou em parte na minha forma de ser. As histórias agora sou eu quem as conta aqui neste espaço virtual feito à escala global, tenha ou não ouvintes para as ouvir, tenha ou não leitores para as seguir, tenha ou não amigos a comentá-las. O testemunho foi dado e a catarse resolvida.
"Aquele que ensina" tem todo o direito de exibir o "nombre de pila" e o "nombre de cuna". É sempre um gosto muito grande ler o que escreves por aqui.
ResponderEliminarE eu um gosto muito grande em ter-te aqui como comentador. Abraço forte...
EliminarViva, meu amigo das letras! É um gosto, um proveito e uma honra vir aqui desfrutar das suas reflexões!
ResponderEliminarÉ sempre tão bom lê-lo...
ResponderEliminarInteressantes curiosidades linguísticas que a lembrança de um amigo traz à memória, Prof.!
ResponderEliminarErudição, graça, amizade e nostalgia numa mesma história - que bem! E que bom podermos lê-la!
ResponderEliminarAh! ah! ah! "Nombre de cuna" e "nombre de pila"... fantástico!mais uma pequena elucubração sobre cuna e pila... é assim, se a nossa identidade resulta da junção da pila com a cuna, então faz todo o sentido que o mesmo se passe com a nossa entidade. Estás a ver... são muito férteis as tuas publicações aqui no feicebuque!
ResponderEliminarPor tida como uma entidade muito fornicada, para não dizer uma outra palavra começada por f*****, fruto de muita bastardia régia...
EliminarGostei de ler. Mas há uma explicação para a etimologia de Guadiana diferente da avançada por Rocha Gomes. Dizem que os romanos lhe chamavam anas (dos patos). Depois os árabes acrescentaram uádi (rio). Bjs e continuação de boas escritas.
ResponderEliminarHá bastantes etimologias, sempre hipotéticas, sobretudo na componente «anas», mas esta do nosso amigo Rocha Gomes pareceu-me bastante curiosa. Obrigado pela explicação alternativa que também gostei de conhecer.
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