25 de novembro de 2020

Híbridos, redundâncias & falsos amigos

PAUL KLEE
(1918)

Conheci o meu velho colega Elviro Rocha Gomes, quando este já estava no final de carreira de professor de liceu e eu me encontrava ainda no início. Gostava de contar histórias que depois divulgava em pequenas brochuras pagas do seu bolso e oferecia de seguida aos amigos. Tudo isto numa altura em que os blogues ainda não tinham sido inventados para publicar histórias como esta, com difusão global imediata na Net ainda que sem assegurar o interesse dos leitores em lê-las.

Lembro-me de a propósito do «rio Guadiana», referir um hibridismo trilíngue, por derivar de riuus (lat.: rio) uā(ár.: rio) + ānâ (rom.: rio), i.e.: «rio rio rio». O mesmo se diga da associação «sé-catedral», visto fazer alusão à «cadeira» episcopal duma diocese, vocábulos provenientes do latim sedes e do grego καθέδρα. Um terceiro caso reside ainda no tratamento académico «professor doutor», oriundo de doctor professor, vocábulos latinos que significam, ipsis verbis, «aquele que ensina».

As redundâncias lexicais aludidas trouxeram-me à memória dois episódios centrados no domínio verbal dos falsos amigos luso-castelhanos, feitos de palavras idênticas com a mesmíssima raiz etimológica, mas com significados distintos. Um deles passou-se comigo na minha primeira viagem a Espanha, quando tive de preencher a ficha de registo num hotel e fiquei perplexo quando tive de indicar o nombre de cuna (= berço, apelido) e o nombre de pila (= pia batismal, próprio).

As fronteiras políticas entre países vizinhos condicionam as fronteiras linguísticas entre idiomas irmãos. As mesmíssimas palavras ganham novos sentidos e valências. assim se explica que um mero huevos con salsa, prato espanhol de «ovos estrelados com molho de tomate» se tenha convertido num restaurante português em «ovos cozidos com salsa». O caso passou-se com um casal amigo extremeño que um dia atravessou a raia do Caia e me contou depois a história com muita surpresa no contar.

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O meu velho amigo Elviro Rocha Gomes não está entre nós. Muitos outros como ele já se foram como ele. Agora só moram nas minhas memórias, nas minhas aprendizagens de vida, naquilo em que me tornei e moldou em parte na minha forma de ser. As histórias agora sou eu quem as conta aqui neste espaço virtual feito à escala global, tenha ou não ouvintes para as ouvir, tenha ou não leitores para as seguir, tenha ou não amigos a comentá-las. O testemunho foi dado e a catarse resolvida.   

10 comentários:

  1. "Aquele que ensina" tem todo o direito de exibir o "nombre de pila" e o "nombre de cuna". É sempre um gosto muito grande ler o que escreves por aqui.

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    1. E eu um gosto muito grande em ter-te aqui como comentador. Abraço forte...

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  2. Viva, meu amigo das letras! É um gosto, um proveito e uma honra vir aqui desfrutar das suas reflexões!

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  3. Interessantes curiosidades linguísticas que a lembrança de um amigo traz à memória, Prof.!

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  4. Teresa Salvado de Sousa29 de novembro de 2020 às 09:19

    Erudição, graça, amizade e nostalgia numa mesma história - que bem! E que bom podermos lê-la!

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  5. Ah! ah! ah! "Nombre de cuna" e "nombre de pila"... fantástico!mais uma pequena elucubração sobre cuna e pila... é assim, se a nossa identidade resulta da junção da pila com a cuna, então faz todo o sentido que o mesmo se passe com a nossa entidade. Estás a ver... são muito férteis as tuas publicações aqui no feicebuque!

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    1. Por tida como uma entidade muito fornicada, para não dizer uma outra palavra começada por f*****, fruto de muita bastardia régia...

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  6. Gostei de ler. Mas há uma explicação para a etimologia de Guadiana diferente da avançada por Rocha Gomes. Dizem que os romanos lhe chamavam anas (dos patos). Depois os árabes acrescentaram uádi (rio). Bjs e continuação de boas escritas.

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    1. Há bastantes etimologias, sempre hipotéticas, sobretudo na componente «anas», mas esta do nosso amigo Rocha Gomes pareceu-me bastante curiosa. Obrigado pela explicação alternativa que também gostei de conhecer.

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