27 de junho de 2021

Garcia I, rei de Portugal e da Galiza

GARCIA REX PORTUGALLIÆ & GALLECIÆ

H. R. DOMINUS GARCIA REX PORTUGALLIÆ ET GALLECIÆ, FILIUS REGIS MAGNI FERDINANDI HIC INGENIO CAPTUS A FRATRE SUO IN VINCULIS. OBIIT ERA MCXXVIII XIº KAL. APRIL
[Aqui repousa o rei Garcia, rei de Portugal e da Galiza, filho do grande rei Fernando. Capturado pelo seu irmão e preso, morreu em 22 de março de 1090]
Inscrição da pedra tumular no Panteón de Reyes de San Isidoro de León

              PRIMEIRO REI DE PORTUGAL              

Ciclicamente, por esta altura, surge na Net a notícia do oitavo centenário e muitos picos da fundação de Portugal em 23 de maio de 1149, que completaria a bonita idade de 842 anos nos dias de hoje. Seguem-se os parabéns habituais dos leitores na caixa dos comentários, convencidos do nascimento efetivo do país nessa data, aquela em que o Papa Alexandre assinou a bula Manifestis Probatum, a promover o até então Condado Portucalense em Reino de Portugal, a declará-lo independente do Reino de Leão e a reconhecer Dom Afonso Henriques como seu legítimo soberano com o título de Rei. Do ponto de vista legal, o Vaticano mais não fez do que transferir para a órbita de São Pedro e da Santa Madre Igreja de Roma a proteção do território, que como testemunho de maior reverência e vassalagem deveria pagar anualmente dois marcos de oiro aos novos suseranos.

O filho de Dona Teresa de Leão e de Dom Henrique de Borgonha convertia-se, assim e pela Graça de Deus, no primeiro Rei dos Portugueses. Acontece que o Rei Garcia da Galiza se intitulara também Rei de Portugal, depois de ter derrotado o Conde Nuno Mendes de Portucale na batalha de Pedroso, travada a 18 de janeiro de 1071, 68 anos antes de Dom Afonso Henriques ter agido do mesmo modo em 25 de julho de 1139, logo após a vitória alcançada na batalha de Ourique. Por outras palavras, a elevação unilateral dum condado a reino e dum conde a rei. É verdade que o filho de Fernando Magno exerceria esse cargo efemeramente, por ter sido destituído das suas funções régias por Afonso de Castela e Leão, Galiza e Toledo, que, ao invés do irmão mais novo, nunca assumiu o título de Rei de Portugal, preferindo o mais prestigiante de Imperador de toda Hispânia.

As histórias da História vivem destas historietas que os cronistas gostam de explorar para depois converter nas versões registadas nas atas e manuais oficiais. Esquecem-se que o surgimento dum país não se pode restringir a um momento único e que a sua afirmação como entidade politica mais ou menos autónoma se insere num complexo processo de independência política, medido por períodos de tempo relativamente longos. No caso concreto português, remonta a 868, quando Vímara Peres assume o destino da Presúria do Porto e do Primeiro Condado de Portucale, dando assim início à Dinastia Vimarenense de condes e duques a governar a Terra Portucalense até à sua rendição pela Dinastia Jimena de Garcia , Rei de Portugal e Galiza, e mais tarde pela Borgonhesa dos genros borguinhões de Afonso Ⅵ, Raimundo e Henrique. História um pouco turbulenta, mas, afinal, factos são factos.

Assinatura de Dom Garcia  de Portugal e Galiza 

22 de junho de 2021

Modiano, a busca da identidade perdida no labirinto da rua das lojas obscuras


« Jusque-là, tout m'a semblé si chaotique, si morcelé... Des lambeaux, des bribes de quelque chose, me revenaient brusquement au fil de mes recherches... Mais après tout, c'est peut-être ça, une vie...
   Est-ce qu'il s'agit bien de la mienne ? Ou de celle d'un autre dans laquelle je me suis glissé ? »
Patrick Modiano, Rue des boutiques obscures (1978)

Um ano antes de ter recebido o Prémio Nobel da Literatura, Patrick Modiano publicou com o selo editorial da Quarto-Gallimard uma coletânea de dez Romans (2013) que, a seu ver, fariam parte duma só obra e seriam a espinha dorsal de toda a sua produção criativa. No aparato mínimo que a acompanha, conta-se um breve Prefácio assinado pelo autor, seguido dum dossier fotográfico e documental, que ajudam a contextualizar a obra tanto em termos factuais como ficcionais. A componente real das individualidades constantes desse álbum inicial a preto e branco marca uma presença muito forte no todo impresso, muito embora a defina como uma espécie de biografia sonhada ou imaginada. Aproveita-se da sonoridade dos nomes citados para os converter de personalidades concretas identificáveis em personagens inventadas como notas musicais inseridas no tecido narrativo dos relatos.

Prosseguindo a minha viagem progressiva pela escrita do escritor e roteirista gaulês, dediquei a minha atenção ao sexto romance dado à luz em dez anos, que na versão portuguesa foi batizado de Na rua das lojas escuras e na brasileira de Uma rua de Roma, o que lhe valeria receber nesse ano de 1978 o prestigiado Prix Goncourt, depois de já ter visto o Les boulevards de ceinture galardoado em 1972 com o Grand prix du roman de l'Académie française. Um palmarés invejável para o jovem criador de histórias fingidas baseadas nas vividas. Apesar de assistirmos ao longo de todo o texto às peregrinações do narrador-protagonista por esplanadas de café, salas de restaurante e quartos de hotel, de o termos visto vaguear à toa por bairros das duas margens do Sena, a ter transposto pontes e arcadas, a atravessar parques e jardins, a palmilhar passeios e cais, a transitar por gares de metro e estações de caminho de ferro, a deambular sem parar por alamedas e avenidas, becos e calçadas, praças e pracetas, ruas e ruelas de Paris, das mais luminosas às mais sombrias, a verdade é que o arruamento que empresta o nome ao livro, Rue des boutiques obscures, nos transfere da França para a Itália, e nos remete para a Via delle Botteghe Oscure, de Roma, bem conhecida de Modiano, por aí ter vivido algum tempo, famosa por ter integrado o antigo gueto judaico da cidade e por ter albergado no seu seio a sede do PCI, o extinto Partito Comunista Italiano.

Lidos os livros inaugurais escritos entre 1968-1978, apercebemo-nos dum autêntico jogo de memórias criado pelas entidades narrativas que, em modo confessional a confundir-se com a autoficção, encetam uma busca incessante pela juventude perdida ou esquecida das décadas que enquadraram a Segunda Guerra Mundial, tempos de agressão e ocupação alemãs e resistência às forças invasoras do Reich. É o que se passa com Guy Roland, nome de empréstimo de Pedro McEvoy, ou talvez de Jimmy Pedro Stern, o herói/anti-herói amnésico e autor detetivesco do relatório de investigação que nos serve de guia nesse processo de clarificação das suas origens individuais apagadas na bruma dos factos vividos numa época indefinida e de fronteiras vagas e incertas. De vez em quando surge-lhe bruscamente um breve clarão do passado, logo rodeado duma bateria de dúvidas de espaços e de tempos indecisos, de resolução difícil de determinar, num exercício lúdico constante de imagens desfocadas de reminiscências feitas de claros-escuros, de luzes fugidias e de sombras persistentes.

As pesquisas encetadas por este homem sem passado não chegam a revelar-lhe, à distância dos anos anteriores à década de 60, a história espectral que o envolve e gostaria de ver contada com todos os pormenores muito obliterados por uma lembrança despovoada de ideias consistentes. A temática da ausência, anunciada logo nos parágrafos iniciais da exposição escrita em forma de romance, aprofundada pelo desconhecimento do paradeiro/sobrevivência de pessoas desaparecidas no deserto labiríntico da existência humana, associada à esperança sempre gorada de as rever, mantém-se inalterada até ao derradeiro parágrafo de inquirição confiada ao leitor, processo investigativo rematado, muito significativamente, por um ponto de interrogação irrevogável. As incertezas sentidas à partida da corresponde com a falta de certeza expressa à chegada. A penumbra das origens reina em todo o percurso encetado pelo detetive de serviço. Assim acontece muitas vezes no mundo real que nos rodeia. Assim acontece outras tantas vezes no universo das letras regidas pela imaginação.

18 de junho de 2021

Night & Day

    FEATHERS BLACK & WHITE    
« Dire que le pour-soi a à être ce qu'il est, dire qu'il est ce qu'il n'est pas en n'étant pas ce qu'il est, dire qu'en lui l'existence précède et conditionne l'essence ou inversement, selon la formule de Hegel, que pour lui "Wesen ist was gewesen ist", c'est dire une seule et même chose, à savoir que l'homme est libre. Du seul fait, en effet, que j’ai conscience des motifs qui sollicitent mon action, ces motifs sont déjà des objets transcendants pour ma conscience, ils sont dehors ; en vain chercherai-je à m’y raccrocher : j’y échappe par mon existence même. Je suis condamné à exister pour toujours par delà mon essence, par delà les mobiles et les motifs de mon acte : je suis condamné à être libre. Cela signifie qu'on ne saurait trouver à ma liberté d'autres limites qu'elle-même ou, si l'on préfère, que nous ne sommes pas libres de cesser d'être libres. »
Jean-Paul Sartre L’Être et le Néant, Paris: Gallimard, 1943

  ChiaroscuroSfumato Unione - Cangiante - Tenebrismo

Em fevereiro de 2020, dei entrada no CHUA com a esperança de poder sair dali a três dias, para resolver um pequeno problema de saúde. A coisa complicou-se e só tive alta ao fim de dois meses e meio de internamento. Pelo meio, ficaram quatro intervenções cirúrgicas, com passagens obrigatórias pelos cuidados intensivos e intermédios. O chiarescuro renascentista converteu-se logo num tenebrismo barroco indesejado.

Em março de 2021, regressei ao CHUA para concluir o processo iniciado no ano anterior. A quinta ida ao bloco operatório correu sem imprevistos e a recuperação há muito aguardada aconteceu sem incidentes inesperados. O longo período entretanto decorrido permitiu que o sfumato sombrio de permeio se transformasse pouco a pouco numa unione de cores vibrantes a fortalecer o cangiante canónico da arte pictórica quinhentista.

A declaração do estado de emergência e o confinamento provocado pelo novo coronavírus SARS-COV-2 apanharam-me no CHUAAgora que se anuncia a quarta vaga da pandemia, vou iniciar hoje a vacinação contra a COVID-19, que me devia ter sido ministrada há cerca de meio ano. Mais vale tarde do que nunca. Depois do claro se ter feito escuro é a altura ideal de o ser e o nada fazerem as pazes e da noite se fazer dia.

14 de junho de 2021

Caravaggio e a decapitação de São João Batista na concatedral de La Valeta

                          CARAVAGGIO                         
Decollazione di San Giovanni Battista (1608)
[Kon-Katidral ta' San Ġwann - Belt Valletta - Malta]

Os maneirismos pré-barrocos de Caravaggio...

A Decapitação de São João Batista (1608), pintada a óleo sobre tela por Michelangelo Merisi da Caravaggio, representa a captação dum instante fulcral, singular, irrepetível, de profundo significado na tradição bíblica judaico-cristã, o martírio do pregador itinerante da Judeia e Galileia, primo de Jesus da Nazaré, que terá batizado e reconhecido como o Messias muito esperado pelos descendentes do patriarca Abraão. A cena é formada por sete atores distintos, seis que olham para o restante com um olhar submisso, horrorizado, determinado, indiferente e atento o condenado, o único que já não pode olhar para ninguém que o olha, por já ter exalado o derradeiro espasmo de vida. A jovem serva com a bacia onde se deverá colocar a cabeça do degolado, a velha com as mãos na cabeça, o carcereiro a testemunhar o desempenho macabro do carrasco e os dois prisioneiros atrás das grades que assistem à execução.

Dizem haver quem se desloque de propósito à concatedral de São João Batista, em La Valeta, para ver no Oratório dedicado ao patrono do templo a obra-prima do polémico criador plástico natural de Caravaggio, no Ducado de Milão, a maior e única por si assinada. Fê-lo com o sangue que escorre do pescoço do santo, a sugerir que quem o havia traçado, refugiado em Malta por ter assassinado um homem em Roma, se identificava assim com a vítima. Interpretação subliminar a que a subjetividade contrarreformista então vigente dava um peso muito particular. A técnica do claro-escuro do quadro marca igualmente para alguns o testemunho da passagem dum Maneirismo italiano já desgastado para um Barroco nascente, que a breve trecho conquistaria a arte ocidental de matriz católica. Olhei com olhar atento a cena e fiquei com vontade de repetir esse olhar uma e outra vez num futuro breve ainda por concretizar. Chi lo sà?

10 de junho de 2021

Erros meus, má fortuna & amor ardente, na visão lírica de Luís Vaz de Camões

S O N E T O  V I I I.

ERros meus, mà fortuna, amor ardente,
Em minha perdição ſe conjurarão,
Os erros, & a fortuna ſobejarão,

Que para mim baſtaua o amor ſomente.


Tudo paſſey; mas tenho taõ preſente
A grande dòr das couſas que paſſarão,
Que as magoadas iras me enſinarão,
A não querer já nunca ſer contente.
 
Errey todo o diſcurſo de meus annos,
Dey cauſa, que a fortuna caſtigaſſe
As minhas mal fundadas eſperanças.
 
D’amor não vi  ſenão breues engãnos,
O quem tanto podeſſe, que fartaſſe
Eſte meu duro genio de vinganças.
 
imas de uís de amoẽs
Em Lisboa : na officina de Pedro Crasbeeck
a custa de Domingos Fernandez  mercador de livros, 1616.
[12], 40 f. ; 4.º (19 cm)

4 de junho de 2021

As abelhas e o frágil perfume das flores

Comparative representations of the bee
« L'ensemble des traits empruntées à toutes les traditions culturelles dénote que, partout, l’abeille apparaît essentiellement comme douée d’une nature ignée, c’est un être de feu. Elle représente les prêtresses du Temple, les Pytho-nisses, les âmes pures des initiés, l’Esprit, la Parole ; elle purifie par le feu et elle nourrit par le miel ; elle brûle par son dard et illumine par son éclat. Sur le plan social, elle symbolise le maître de l’ordre et de la prospérité, roi ou em-pereur, non moins que l’ardeur belliqueuse et le courage. Elle s’apparente aux héros civilisateurs, qui établissent l’harmonie par la sagesse et par le glaive. »
J. Chevalier et A. Cheerbrant, Dictionnaire des symboles : Mythes, rêves, coutumes, gestes, formes, figures, couleurs, nombres. Paris : Robert Laffont – Jupiter, 1969, 1982 (2b)
    Du roi Childéric à l'empereur Napoleón Bonaparte   

Celebra-se este ano o bicentenário da morte de Napoleão Bonaparte (1769-1821), o Imperador dos Franceses (1804-1814, 1815) que, depois de ter tido a ilusão de ser o senhor do mundo, perdeu em Waterloo tudo o que conquistara e acabou ingloriamente os seus dias desterrado na ilha inglesa de Santa Helena, privado de todos os títulos que havia colecionado ao longo da vida. Polémico durante toda a sua existência, o organizador do estado moderno continua a alimentar as mais diversas controvérsias na atualidade, alternando a fama de tirano para uns e a de herói para outros.

Nos seis anos que durou o último exílio no Atlântico Sul, o ex-general gaulês escreveu um livro sobre Júlio César, de quem era um admirador confesso. Não é de estranhar que tenha substituído os anteriores divisas monárquicas dos Bourbons pelas imperiais da Era Napoleónica. No centro do manto de arminho e encimado por uma coroa fechada de cinco arcos, domina uma águia romana de asas abertas, rodeada pelo cetro do Poder, pela mão da Justiça e pelo colar da Légion d'Honneur. Um enxame de abelhas de número indefinido completa o brasão de armas do novo regime.

Onde luzia a flor-de-lis capetiana, passou a figurar o N de Napoleón. As abelhas merovíngias recuperou-as Bonaparte das insígnias de Childéric er. O primeiro imperador dos franceses restaurou a simbólica da ordem e da prosperidade, do ardor e da coragem, da civilização e da harmonia inaugurada na antiga província romana da Gália pelo primeiro rei histórico dos francos, através da sabedoria e da espada com que soube resistir e sair vitorioso das invasões bárbaras rivais de Hunos, Vândalos, Visigodos e Borgonheses. Exemplo vivo de heroísmo medieval que urgia restaurar na modernidade.

O renascer do interesse pela milenar heráldica frâncica ter-se-á devido, em grande medida, à descoberta em 1653 da tumba do primeiro rex Francorum com existência real atestada. Junto aos restos mortais do filho de Mérovée, foram encontrados numerosos objetos preciosos, entre os quais um anel com o nome do soberano inscrito, diversas moedas e cerca de trezentos insetos com asas douradas. Desaparecia a flor-de-lis tradicional e entrava em cena a nova simbólica dos diversos períodos do regime imperial. As abelhas a inalarem o frágil perfume das flores napoleónicas. 
  
ABEILLES DE NAPOLEÓN