« Jusque-là, tout m'a semblé si chaotique, si morcelé... Des lambeaux, des bribes de quelque chose, me revenaient brusquement au fil de mes recherches... Mais après tout, c'est peut-être ça, une vie...Est-ce qu'il s'agit bien de la mienne ? Ou de celle d'un autre dans laquelle je me suis glissé ? »Patrick Modiano, Rue des boutiques obscures (1978)
Um ano antes de ter recebido o Prémio Nobel da Literatura, Patrick Modiano publicou com o selo editorial da Quarto-Gallimard uma coletânea de dez Romans (2013) que, a seu ver, fariam parte duma só obra e seriam a espinha dorsal de toda a sua produção criativa. No aparato mínimo que a acompanha, conta-se um breve Prefácio assinado pelo autor, seguido dum dossier fotográfico e documental, que ajudam a contextualizar a obra tanto em termos factuais como ficcionais. A componente real das individualidades constantes desse álbum inicial a preto e branco marca uma presença muito forte no todo impresso, muito embora a defina como uma espécie de biografia sonhada ou imaginada. Aproveita-se da sonoridade dos nomes citados para os converter de personalidades concretas identificáveis em personagens inventadas como notas musicais inseridas no tecido narrativo dos relatos.
Prosseguindo a minha viagem progressiva pela escrita do escritor e roteirista gaulês, dediquei a minha atenção ao sexto romance dado à luz em dez anos, que na versão portuguesa foi batizado de Na rua das lojas escuras e na brasileira de Uma rua de Roma, o que lhe valeria receber nesse ano de 1978 o prestigiado Prix Goncourt, depois de já ter visto o Les boulevards de ceinture galardoado em 1972 com o Grand prix du roman de l'Académie française. Um palmarés invejável para o jovem criador de histórias fingidas baseadas nas vividas. Apesar de assistirmos ao longo de todo o texto às peregrinações do narrador-protagonista por esplanadas de café, salas de restaurante e quartos de hotel, de o termos visto vaguear à toa por bairros das duas margens do Sena, a ter transposto pontes e arcadas, a atravessar parques e jardins, a palmilhar passeios e cais, a transitar por gares de metro e estações de caminho de ferro, a deambular sem parar por alamedas e avenidas, becos e calçadas, praças e pracetas, ruas e ruelas de Paris, das mais luminosas às mais sombrias, a verdade é que o arruamento que empresta o nome ao livro, Rue des boutiques obscures, nos transfere da França para a Itália, e nos remete para a Via delle Botteghe Oscure, de Roma, bem conhecida de Modiano, por aí ter vivido algum tempo, famosa por ter integrado o antigo gueto judaico da cidade e por ter albergado no seu seio a sede do PCI, o extinto Partito Comunista Italiano.
Lidos os livros inaugurais escritos entre 1968-1978, apercebemo-nos dum autêntico jogo de memórias criado pelas entidades narrativas que, em modo confessional a confundir-se com a autoficção, encetam uma busca incessante pela juventude perdida ou esquecida das décadas que enquadraram a Segunda Guerra Mundial, tempos de agressão e ocupação alemãs e resistência às forças invasoras do Ⅲ Reich. É o que se passa com Guy Roland, nome de empréstimo de Pedro McEvoy, ou talvez de Jimmy Pedro Stern, o herói/anti-herói amnésico e autor detetivesco do relatório de investigação que nos serve de guia nesse processo de clarificação das suas origens individuais apagadas na bruma dos factos vividos numa época indefinida e de fronteiras vagas e incertas. De vez em quando surge-lhe bruscamente um breve clarão do passado, logo rodeado duma bateria de dúvidas de espaços e de tempos indecisos, de resolução difícil de determinar, num exercício lúdico constante de imagens desfocadas de reminiscências feitas de claros-escuros, de luzes fugidias e de sombras persistentes.
As pesquisas encetadas por este homem sem passado não chegam a revelar-lhe, à distância dos anos anteriores à década de 60, a história espectral que o envolve e gostaria de ver contada com todos os pormenores há muito obliterados por uma lembrança despovoada de ideias consistentes. A temática da ausência, anunciada logo nos parágrafos iniciais da exposição escrita em forma de romance, aprofundada pelo desconhecimento do paradeiro/sobrevivência de pessoas desaparecidas no deserto labiríntico da existência humana, associada à esperança sempre gorada de as rever, mantém-se inalterada até ao derradeiro parágrafo de inquirição confiada ao leitor, processo investigativo rematado, muito significativamente, por um ponto de interrogação irrevogável. As incertezas sentidas à partida da corresponde com a falta de certeza expressa à chegada. A penumbra das origens reina em todo o percurso encetado pelo detetive de serviço. Assim acontece muitas vezes no mundo real que nos rodeia. Assim acontece outras tantas vezes no universo das letras regidas pela imaginação.
Um texto fabuloso, Prof., a definir a escrita deste autor que ainda não conheco. Um sentimento de falta de identidade emana deste relato, envolto numa certa angústia existencial, despertando a vontade de saber mais...
ResponderEliminarUm texto muito bom e convidativo. Do autor apenas li um título, ficou a vontade de descobrir outros...
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