22 de setembro de 2021

Hélia Correia, uma bastardia azul com sereias, bruxas e desejos de ver o mar

 
«Moisés sentia a estranha comoção que transtornava os tios. Na cozinha, as mu-lheres retomavam o silêncio com que, a princípio, o tinham recebido. E as con-versas na cavalariça, sendo os dias tão curtos, resultavam mais apressadas. Pou-co conseguia que os fregueses falassem sobre o mar. No entanto, ele se acos-tumara a servir-se dos próprios pensamentos. Imaginava o dia do encontro com aquele grande azul que se estendia, semelhante a um prado que florisse. A ob-sessão tomara conta dele como alguém que o tivesse sequestrado. Tudo o que via e ouvia era filtrado, enquadrado na sua perspetiva. Confiava em que os tios o levariam, tarde ou cedo, à Vieira. Não pensava que, com aquela espécie de tra-balho, não desfrutavam dos prazeres do verão, quando abundavam os pedidos de cavalos e de carros abertos.»
Hélia Correia, Bastardia (2005)

Habituei-me às palavras de Hélia Correia na Arte poética (1972), expressa nos versos de intervenção, resistência e luta, cantados e musicados por Jorge Letria, e passados depois de mão em mão como um instante de pão. Seguiram-se os relatos breves das novelas a resvalar para a dimensão mais longa de um ou outro romance. Com este percurso pela escrita, foi laureada com os mais altos prémios literários nacionais, com um destaque para o Prémio Camões (2015), bem como o de ter sido listada pela Asociación de Escritoras e Escritores em Lingua Galega como uma Escritora Galega Universal (2017).

As cerca de seis dezenas de páginas de Bastardia (2015), o mais recente livro que chegou até mim da sua lavra, remete-nos para a órbita restrita do conto, uma categoria ficcionada composta em prosa e de natureza épico-narrativa, forma genérica assente num tema particular e episódico em que também se tem vindo a destacar. A história que aqui nos traz está concentrado no destino trágico de Moisés - etimologicamente, o que foi tirado das águas -, um herói mítico nascido fora do matrimónio materno, gerado numa noite de bruxedo e que passou a sua curta existência convicto de ser filho do mar e irmão das sereias.

Uma navegação solitária pela rede das redes informáticas, em busca da duvidosa legitimidade de algumas cabeças coroadas ou por coroar da nossa da monarquia pretérita, conduziu-me de modo casual a essa outra ligação bastarda com raízes bíblicas profundas judaico-cristãs, composta com o engenho e arte habituais a que a escritora e tradutora portuguesa nos habituou. Descobri também, na sequência dessa pesquisa, ter inspirado a veia criadora de Paula Rego em quatro telas inéditas, cuja sensibilidade estética a levou a adjetivar o texto de maravilhoso. Assim o descreveu a Colin Wiggins, aquando da exposição The Boy Who Loved the Sea and Other Stories, organizada pela Jerwood Gallery de Hastings, entre 21 de outubro de 2017 e 7 de janeiro de 2018. Melhor elogio seria difícil de coligir e dispensa mais encómios verbais se os visuais valem mais do que mil palavras.

As mulheres-pássaros da mitologia helénica são transfiguradas nas mulheres-peixes do imaginário medieval escandinavo que sem se dar conta se lhe seguiu. Essas irmãs híbridas do azul marinho das águas superficiais mediterrânico-bálticas ou do azul celestial profundo dos sonhos irrealizáveis, semicobertas de escamas brilhantes ou de penas douradas, simbolizam a autodestruição dos desejos e paixões fatais de todos os aventureiros pelágicos, aqueles que não souberam resistir como Ulisses à atração erótica de Afrodite e se deixaram submergir no reino gelado de Poseidon. Na singela ingenuidade retratada na fábula, está representada a fronteira indeterminada entre a epopeia/tragédia dum herói/anti-herói singular, dum ser solitário intemporal em busca da plenitude unificadora do nada que é tudo ou da morte que é vida.

2 comentários:

  1. Magnífico texto, Prof., e uma bela sugestão de leitura, de uma autora que me agrada sobremaneira...

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  2. Da autora ainda só li " Lilias Fraser", que gostei muito.
    Outros títulos aguardam oportunidade, incluindo "Bastardia".
    E gostei muito do seu texto.

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