17 de setembro de 2021

Uma língua de palmo e 1/2 ao pescoço ou zipada por inteiro na boca

«- Nosso Ford - ou Nosso Freud, como, por alguma razão impenetrável, ele gostava de se chamar quando falava de questões psicológicas - Nosso Freud foi o primeiro a reve-lar os tenebrosos perigos da vida familiar. O mundo estava cheio de pais e, por conse-quência, cheio de miséria; cheio de mães e, por consequência, cheio de toda a espécie de perversões, desde o sadismo até à castidade; cheio de irmãos e irmãs, de tios e tias - cheio de loucura e suicídio.»
Aldous Huxley, Admirável mundo novo (1931 | s.d.: , 53)
«- Não vês que o significado da novilíngua é precisamente restringir o campo do pensa-mento? Acabaremos por fazer com que o crimepensar seja literalmente impossível, pois não haverá palavras para o exprimir. Todos os conceitos de que possamos ter necessida-de serão expressos cada um deles, exclusivamente por uma palavra, de significação rigo-rosamente definida, sendo eliminados e votados ao esquecimento todos os seus sentidos subsidiários. Na Décima Primeira Edição [Dicionário de Novilíngua] já não estamos longe desse objetivo. Mas o processo continuará muito depois de tu e eu termos morri-do. Ano após anos, cada vez menos palavras, e o alcance da consciência cada vez mais limitado. Mesmo hoje, como é evidente, não há motivo ou desculpa para se cometer um crimepensar. Simples questão de autodisciplina, de controlo da realidade. Mas no futuro nem mesmo isso será necessário. A Revolução ficará completa quando a língua for per-feita, A Novilíngua é o SOCING e o SOCING é a novilíngua - acrescentou  com uma espécie de exaltação mística - Já alguma vez pensaste, Winston, que no ano 2050, o mais tardar, não haverá um único ser humano capaz de entender uma conversa como a que estamos a ter agora?»
George Orwell, 1994 (1949 |  1999: , 5; 58 )
LINGUAJARES

Li tempos que as palavras «mãe» e «pai» podiam vir a sair dos formulários escolares gauleses. Serão substituídas por «responsável e «responsável 2», afastada que está a hipótese também ela problemática de «progenitor 1» e «progenitor 2». Os mass media onde estes faits divers são comunicados ao mundo já haviam noticiado, na devida altura, que o governo desse mesmo país do além-Pirenéus vetara a chamada «linguagem inclusiva» em textos oficiais, com o beneplácito da Académie française. Vá-se lá entender esta discrepância de critérios do politicamente correto no que à igualdade de género e afins se refere. Frescuras do momento, como diria um colega e amigo meu a este propósito.

Desconheço qual terá sido a evolução desta polémica fora das fronteiras linguísticas portuguesas. Só sei que de vez em quando as diatribes sobre estas verdadeiras questiúnculas de lana-caprina assentes no género biológico e gramatical das palavras vêm à baila num tom cada vez mais acirrado, ortodoxo e dogmático. O emprego de determinadas formas verbais em detrimento doutras tem vindo a proliferar a grande velocidade, como cogumelos bravios em terreno húmido. Qualquer dia seremos obrigados a tirar um curso extra de novilíngua para nos curarmos dos crimepensar homofóbicos, transfóbicos e quejandofóbicos da velhilíngua. A bizantinice medieval voltou a pisar o palco para rediscutir o sexo dos anjos.

Na dúvida de registar um «æ», «@», «o-a/a-o», «e/Ə» ou «x» em final dos substantivos-adjetivos, não uso nenhum, até porque depois seria incapaz de os pronunciar. É que quer queiramos ou não, a linguagem verbal é linear e não admite, como a música instrumental, produzir dois sons ao mesmo tempo ou captá-los como se se tratasse duma pintura a 2D ou duma escultura a 3D. O acorde acústico da voz humana é impossível de produzir sem se recorrer a uma qualquer tecnologia de ponta. A língua de palmo e 1/2 à volta do pescoço necessária para proceder ao desdobramento inclusivo adequado do discurso oral arrisca-se assim a deixá-la zipada por inteiro na boca para não correr o risco de ser politicamente incorreta.

A permuta dum «-a/-o» por um qualquer neografismo inclusivo, na tentativa inglória de resolver a quadratura do círculo, será sempre uma redução ao absurdo. É nesse sentido, que me dá vontade de divulgar uma nova proposta tão estapafúrdia como as já postas em curso. Foi sugerida há mais duma década por um outro amigo e colega que gostava de brincar com estes sufocos existenciais. A seu ver, tudo se resolveria se juntássemos a perninha para cima do «σ» com a perninha para baixo do «α» para obter um «∝» e pronunciar «ə», como se fosse uma vogal neutra. Digamos que não serviria para nada, que a ortografia é assexual, mas ficaria muito bem nos meus registos escritos e, quem sabe, se nos orais também.

          Velhilíngua - Crimepensar - Novilíngua          
[CELACC]

2 comentários:

  1. Fico atónita com estas incongruências / incoerências de alguns seres humanos, que não têm capacidade de se ocuparem com ideias essenciais à evolução positiva da humanidade... Que as ideias de Aldous Huxley e de George Orwell continuem a ser sérios avisos à navegação sobre os perigos das sociedades ditatoriais e castradoras, porque a ideia de regresso ao controlo do pensamento é assustadora...

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  2. Conceitos linguísticos a cada dia que passa, mais esdrúxulos!
    Valha-me deus pequenino.

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