27 de outubro de 2021

Les pommes de terre, les petits pois, les asperges et les poulets de Marcel Proust

Françoise et la Charité de Giotto

LA CUISINE DE COMBRAY

« À cette heure je descendais apprendre le menu, le dîner était déjà com-mencé, et Françoise, commandant aux forces de la nature devenues ses aides, comme dans les féeries les géants se font engager comme cuisiniers, frap-pait la houille, donnait à la vapeur des pommes de terre à étuver et faisait finir à point par le feu les chefs-d’œuvre culinaires d’abord préparés dans des réci-pients de céramistes qui allaient des grandes cuves, marmites, chaudrons et poissonnières, aux terrines pour le gibier, moules à pâtisserie, et petits pots de crème en passant par une collection complète de casseroles de toutes dimen-sions. Je m'arrêtais à voir sur la table, la fille de cuisine venait de les écos-ser, les petits pois alignés et nombrés comme des billes vertes dans un jeu ; mais mon ravissement était devant les asperges, trempées d'outre-mer et de rose et dont l'épi, finement pignoché de mauve et d'azur, se dégrade insensi-blement jusqu'au pied - encore souillé pourtant du sol de leur plant - par des irisations qui ne sont pas de la terre. Il me semblait que ces nuances célestes trahissaient les délicieuses créatures qui s'étaient amusées à se métamorpho-ser en légumes et qui, à travers le déguisement de leur chair comestible et fer-me, laissaient apercevoir en ces couleurs naissantes d'aurore, en ces ébauches d'arc-en-ciel, en cette extinction de soirs bleus, cette essence précieuse que je reconnaissais encore quand, toute la nuit qui suivait un dîner j'en avais mangé, elles jouaient, dans leurs farces poétiques et grossières comme une féerie de Shakerspeare, à changer mon pot de chambre en un vase de parfum.

La pauvre Charité de Giotto, comme l'appelait Swann, chargée par Françoise de les " plumer ", les avait près d'elle dans une corbeille, son air était doulou-reux, comme si elle ressentait tous les malheurs de la terre ; et les légères cou-ronnes d'azur qui ceignaient les asperges au-dessus de leurs tuniques de rose étaient finement dessinées, étoile par étoile, comme le sont dans la fresque les fleurs bandées autour du front ou piquées dans la corbeille de la Vertu de Pa-doue. Et cependant, Françoise tournait à la broche un de ces poulets, comme elle seule savait en rôtir, qui avaient porté loin dans Combray l'odeur de ses mérites, et qui, pendant qu'elle nous les servait à table, faisaient prédominer la douceur dans ma conception spéciale de son caractère, l'arôme de cette chair qu'elle savait rendre si onctueuse et si tendre n'étant pour moi que le propre parfum d'une de ses vertus. »

Marcel Proust, À la recherche du temps perdu - Du côté de chez Swann: Combray (1913)
Paris: Gallimard - Folio , 1954: I, ii, 144-145

Giotto, Karitas (c. 2306)
[Cappella degli Scrovegni - Padova]

22 de outubro de 2021

Os olhares da Medusa olhados por Michelangelo Merisi da Caravaggio

CARAVAGGIO
Scudo con testa di Medusa (ca. 1598-1599)
Φόρκυϊ δ᾽ αὖ Κητὼ Γραίας τέκε καλλιπαρῄους ἐκ γενετῆς πολιάς, τὰς δὴ Γραίας καλέουσιν ἀθάνατοί τε θεοὶ χαμαὶ ἐρχόμενοί τ᾽ ἄνθρωποι, Πεμφρηδώ τ᾽ ἐύπεπλον Ἐνυώ τε κροκόπεπλον, Γοργούς θ᾽, αἳ ναίουσι πέρην κλυτοῦ Ὠκεανοῖο ἐσχατιῇ πρὸς Νυκτός, ἵν᾽ Ἑσπερίδες λιγύφωνοι, Σθεννώ τ᾽ Εὐρυάλη τε Μέδουσά τε λυγρὰ παθοῦσα. μὲν ἔην θνητή, αἳ δ᾽ ἀθάνατοι καὶ ἀγήρῳ, αἱ δύο: τῇ δὲ μιῇ παρελέξατο Κυανοχαίτης ἐν μαλακῷ λειμῶνι καὶ ἄνθεσιν εἰαρινοῖσιν. τῆς δ᾽ ὅτε δὴ Περσεὺς κεφαλὴν ἀπεδειροτόμησεν, ἔκθορε Χρυσαωρ τε μέγας καὶ Πήγασος ἵππος.

Garantem-nos os mitos ancestrais, repetidos de geração em geração pelas lendas etiológicas e recriados pelos fabulistas ao longo dos tempos regidos por Cronos, ter tido a infeliz Medusa a veleidade de se achar mais bela do que a divina Atena. A ousadia saiu-lhe cara, porque a filha olímpica de Zeus e Métis não deixou de punir a filha marinha de Fórcis e Ceto. Converteu os longos cabelos da rival em monstruosas serpentes, alongou-lhe os dentes como se fossem presas de javali e substituiu a macieza das mãos e dos pés pela aspereza do bronze. Dotou-a ainda dum olhar penetrante com o poder de reduzir a pedra quem os olhasse de frente se fazem se pagam. E ainda bem que assim foi, pois caso contrário Michelangelo Merisi de Caravaggio não teria podido pintar o destino trágico da Górgona degolada.

Tema insólito ao gosto maneirista pela exibição pintada dum vulto menor do panteão helénico e ecos nítidos no latino, este olhar gélido cristalizado para a eternidade num escudo de torneio representa a fixação barroca dum ápice único, o mais dramático da sua existência, o último esgar de vida do monstro decapitado. Um olhar sem vida que deixou de olhar quem o está a olhar, por ter provado os estertores da morte. Um verdadeiro paradoxo do olhar. Aquele que em vida petrificava homens e deuses com o olhar, depois da morte passou a atrair multidões para ser olhado. O horror, espanto, choque duma cabeça viperina de olhar sinistro outrora vivo, transformou-se numa cabeça sangrenta, incapaz de voltar a olhar quem a quiser olhar numa superfície polida, sem temor, seguindo o exemplo de Perseu.

Medusa, a sinistra irmã de Esteno e Euríala, a única Górgona mortal que se tornou imortal depois de morta, traduz um percurso imagético singular que lhe outorga o estatuto de anti-heroína atípica, criado pela vontade involuntária dos deuses e voluntária dos homens, ou o de heroína inesperada, por ter sido seduzida ou violada por Poseidon, o supremo deus dos mares e eterno inimigo da fundadora da cidade ática de Atenas. A magia do olhar, pintado a óleo numa tela colada sobre uma rodela de madeira de choupo, há mais de quatrocentos anos pelo mestre lombardo do tenebrismo, nascido em Caravaggio, uma aldeia até então insignificante do norte da Italia, situada nas imediações de Bérgamo, representa um marco invejável na história das artes figurativas ocidentais executada a duas dimensões. 

Quando a visitei na cidade das flores, a olhei por cima das muitas cabeças vivas que olhavam a cabeça morta da mãe de Criasor e Pégaso, um gigante e um cavalo-alado. Sorte a minha ser alto e ter logrado olhá-lo no meio da sala da Galleria degli Uffici di Firenze que lhe deu o nome. Bem podia chamar-se de Caravaggio, se de facto se provar a suspeita do rosto grotesco da Górgona Medusa ser o do próprio Michelangelo Merisi, que lhe teria servido de modelo ideal, autorretratando-se a fazer uma carantonha refletida num espelho. Brincadeiras do grande mestre das trevas italiano. Ironias dos olhares dum dos mais enigmáticos pintores dos séculos de ouro da cultura pós-tridentina católico-romana. Uma obra-prima para olhar enquanto se é olhado com um olhar que há muito deixou de olhar.  

EPÍGRAFE
Por sua vez, Ceto gerou com Fórcis as Greias de belo semblante, com os cabelos grisalhos desde o nascimen-to, a quem os deuses imortais e os homens que andam pela terra chamam anciãs; a Penfredo de formoso peplo; a Énio, com uma capa açafroada; e as Górgonas, que vivem do outro lado do famoso Oceano à beira da Noite junto às Hespérides de voz harmoniosa: Esteno, Euríala e a infeliz Medusa. Esta era mortal, mas as outras duas eram imortais e isentas de velhice. Com ela só se deitou o do cabelo azul [Poseidon] no suave prado entre flores primaveris. Quando Perseu lhe cortou a cabeça, o emergiram o gigante Criasor e o cavalo Pégaso.
Hesíodo, Teogonia (c. séc. Ⅶ AEC, 270-282)

18 de outubro de 2021

Marcel Proust, primeira busca do tempo perdido: pelo lado de Swann

« Et tout d'un coup le souvenir m'est apparu. Ce goût c'était celui du petit morceau de madeleine que le dimanche matin à Combray (parce que ce jour-là je ne sortais pas avant l'heure de la messe), quand j'allais lui dire bonjour dans sa chambre, ma tante Léonie m'offrait après l'avoir trempé dans son infusion de thé ou de tilleul. »
Marcel Proust, Du côté de chez Swann (1913)

Se as madeleines são o motivo mais conhecido, referido e citado de Marcel Proust, comecemos por esses pequenos biscoitos de pasta mole em forma de barqueta ou concha de vieira mergulhada numa infusão de chá ou de tília, que quase abrem o Do lado / No caminho de Swann (1913), o primeiro painel do políptico romanesco Em busca do tempo perdido (1913-1927). A recordação dos quartos em que dormiu ao longo da vida, dos mundos de sonhos fugidios ou dos medos, angústias e terrores persistentes de infância invadem de modo obsessivo o imaginário do narrador-protagonista em noites de insónia ou de devaneio criativo. Avidamente e ao correr da pena, grava essas reminiscências na mente e regista-as vorazmente por escrito, antes que se desvaneçam no ar, como os eflúvios distantes das tisanas aromáticos preparadas pela tia Léonie em período de férias. É nas solitárias e silenciosas horas anteriores ao jantar, que a magia das imagens etéreas da lanterna-mágica exercia um fascínio mais intenso, ao projetar na opacidade impalpável das paredes, dos tetos e dos cortinados as aventuras lendárias de Golo e de Geneviève de Brabant, ou as tradicionais do Barba Azul, numa total iridescência multicolorida, intangível e sobrenatural

Esta etapa inicial da Recherche está, também ela, repartida por três partes autónomas ou semi-independentes, a funcionar como outras tantas áreas de repouso, de serviço ou de provimento do caminhante pelos labirintos da memória. Dedica-a a convocar os espaços cénicos onde a sua fase de formação se representou, a fictícia Combray. As ruas e praças, as casas e jardins, os lagos e florestas, os parques e riachos, os habitantes da pequena cidade de província idealizada num livro são descritas profusamente e sem pressas de as arrumar como pano de fundo do relato. O mesmo se diga também dos monumentos e comércio local, dos hábitos alimentares, religiosos e culturais, do dia a dia dos diversos estratos sociais que dão vida à comunidade, da burguesia endinheirada com ambições aristocratas, dos senhores e serviçais, dos nativos e forasteiros. ainda tempo para falar da arte em geral, a pintada e a esculpida, bem como da filosofia, política e música, do teatro e atores-atrizes da moda, de livros e leituras, de autores reais e fabulados, em longas tiradas digressivas, a encher a mancha gráfica com períodos e parágrafos infindáveis, distribuídos página após página, em ritmo intenso, constante e infatigável.  

O vizinho diletante e visita habitual da mansão de família - aquele que o nome ao tomo inaugural da heptalogia e fora apresentado nas sequências de abertura das imagens perdidas do memorista - surge agora em grande plano na medial, toda ela dedicada a esquadrinhar os contornos de Um amor de Swann. Aquele que privava com o Presidente da República Francesa e o Príncipe de Gales, que tanto acudia aos mais elegantes salões aristocratas da moda como aos mais banais salões da burguesia parisiense, apaixonara-se por uma cocotte moldada no Segundo Império (1852-1870) e afinada pela Belle Époque (1871-1914). A vulgaridade da situação termina quando Charles Swann, un homme du monde, leva a fantasia ao ponto de substituir o estatuto de tida e mantida da demi-mondaine Odette de Crécy pelo de esposa, por representar para si a imagem acabada da fille de Jéthro, pintada a fresco na Capela Sistina por Sandro Botticelli, ou adornada com uma orquídea catleia no corpete.

Depois do segmento central da Busca preencher cerca de metade do tomo que o alberga, como se se tratasse dum romance dentro do romance, surge-nos a mais curta a funcionar como epígono natural do relato. O Paris do quai Conti oitocentista, situado na transição do final da década de 70, regressa ao início da de 90 de onde se tinha afastado. O relator de primeira pessoa retoma o protagonismo caído e passa a evocar os Nomes de países: o nome que povoaram os seus sonhos de menino, num derradeiro lanço de flashes ampliados pelo poder da imaginação. Dos quartos de Combray e do Grand-Hôtel de Balbec, transfere o delírio delirante para as cidades, lugares e sítios das regiões atlânticas da Bretanha e da Normandia ou italianas da Toscana, divaga pelos espaços urbanos de Florença, Veneza, Parma e Pisa, até que uma grande dor de garganta lhe interrompe os projetos de viajar e o obriga a substituir a fantasia etérea pela realidade tangível. O reverso da medalha surge ao rever Mlle Gilberte Swann nos Champs-ÉlyséesO amor-paixão surge e duas gerações reentram em cena.

Confia-nos o autor dos cadernos de memórias afetivas, voluntárias ou involuntárias, haver em Combray dois percursos alternativos para caminhar nas suas redondezas. O de Méséglise-la-Vineuse ou de Swann - por passar defronte da propriedade de M. Swann - e o de Guermantes, situado no outro lado da localidade de meninice do enunciador sem petit nom ou nom de famille revelado. A fase mais recuada pesquisa pelos labirintos dos tempos perdidos da sua vida decorrem no primeiro trilho que serve de título a esse estádio pessoal de existência. Provavelmente prologar-se-á no seguinte e de certeza no terceiro da série. A ver vamos. Estou com alguma curiosidade de saber. Entretanto, não dispenso uma pequena pausa no trajeto para respirar e ganhar fôlego para novas deambulações pelas correntes do pensamento revelados pela escrita.

14 de outubro de 2021

Quando os livros falam de livros

Agora só me falta mergulhar na leitura de Proust...

– Não queres livros nem vídeos?
– Não me estou a lembrar de nenhum título em particular...
– Que te parece Em Busca do Tempo Perdido? – sugeriu Tamaru. – Se ainda não leste a obra de Proust, creio que será uma boa ocasião para o fazeres.
– Tu já leste?
– Não. Nunca fui parar à prisão nem tive de andar escondido do mundo durante muito tempo. Dizem que é difícil ler essa obra em vários volumes, a não ser que uma pessoa se veja numa situação do género.
– Conheces alguém que tenha lido o romance até ao fim?
– Bom, conheço algumas pessoas que passaram longas temporadas atrás das grades, mas não é propriamente o tipo de gente que se interesse por Proust.
– Vou experimentar. Quando conseguires arranjar os livros, envia-mos.
– A verdade é que já os tenho aqui à mão – confessou Tamaru...

Em cima da mesa empilhavam-se os sete volumes da obra Em Busca do Tempo Perdido, de Proust. Não estavam novos, mas nada indicava que tivessem sido lidos...

– Agora só me falta mergulhar na leitura de Proust...

Sentada no sofá, concentrou-se na leitura, seguindo as páginas escritas por Proust: Do Lado de Swann. Imaginou as cenas descritas na história e tentou que outro pensamento interferisse com a sua mente...

Haruki Murakami, 1Q84-3 (Lx: CdL, 2; 40-41, 43 & 87)


NOTA
No dia em que resolvi tirar da estante o volume Du côté de chez Swann, lido pela primeira vez há uma eterni-dade na FLUL para a cadeira de Literatura Francesa. Boa altura, esta, para regressar a Marcel Proust e À la re-cherche du temps perdu, que nunca cheguei a visitar na sua totalidade e agora espero ser uma boa ocasião de o fazer. A aventura já começou em setembro, mas só agora começo a dar conta contada do facto, uma verdadeira maratona pelos vários milhares de páginas em letra miúda e parágrafos quilométricos que ainda me faltam percorrer da grande saga memorialista das letras francesas.