22 de outubro de 2021

Os olhares da Medusa olhados por Michelangelo Merisi da Caravaggio

CARAVAGGIO
Scudo con testa di Medusa (ca. 1598-1599)
Φόρκυϊ δ᾽ αὖ Κητὼ Γραίας τέκε καλλιπαρῄους ἐκ γενετῆς πολιάς, τὰς δὴ Γραίας καλέουσιν ἀθάνατοί τε θεοὶ χαμαὶ ἐρχόμενοί τ᾽ ἄνθρωποι, Πεμφρηδώ τ᾽ ἐύπεπλον Ἐνυώ τε κροκόπεπλον, Γοργούς θ᾽, αἳ ναίουσι πέρην κλυτοῦ Ὠκεανοῖο ἐσχατιῇ πρὸς Νυκτός, ἵν᾽ Ἑσπερίδες λιγύφωνοι, Σθεννώ τ᾽ Εὐρυάλη τε Μέδουσά τε λυγρὰ παθοῦσα. μὲν ἔην θνητή, αἳ δ᾽ ἀθάνατοι καὶ ἀγήρῳ, αἱ δύο: τῇ δὲ μιῇ παρελέξατο Κυανοχαίτης ἐν μαλακῷ λειμῶνι καὶ ἄνθεσιν εἰαρινοῖσιν. τῆς δ᾽ ὅτε δὴ Περσεὺς κεφαλὴν ἀπεδειροτόμησεν, ἔκθορε Χρυσαωρ τε μέγας καὶ Πήγασος ἵππος.

Garantem-nos os mitos ancestrais, repetidos de geração em geração pelas lendas etiológicas e recriados pelos fabulistas ao longo dos tempos regidos por Cronos, ter tido a infeliz Medusa a veleidade de se achar mais bela do que a divina Atena. A ousadia saiu-lhe cara, porque a filha olímpica de Zeus e Métis não deixou de punir a filha marinha de Fórcis e Ceto. Converteu os longos cabelos da rival em monstruosas serpentes, alongou-lhe os dentes como se fossem presas de javali e substituiu a macieza das mãos e dos pés pela aspereza do bronze. Dotou-a ainda dum olhar penetrante com o poder de reduzir a pedra quem os olhasse de frente se fazem se pagam. E ainda bem que assim foi, pois caso contrário Michelangelo Merisi de Caravaggio não teria podido pintar o destino trágico da Górgona degolada.

Tema insólito ao gosto maneirista pela exibição pintada dum vulto menor do panteão helénico e ecos nítidos no latino, este olhar gélido cristalizado para a eternidade num escudo de torneio representa a fixação barroca dum ápice único, o mais dramático da sua existência, o último esgar de vida do monstro decapitado. Um olhar sem vida que deixou de olhar quem o está a olhar, por ter provado os estertores da morte. Um verdadeiro paradoxo do olhar. Aquele que em vida petrificava homens e deuses com o olhar, depois da morte passou a atrair multidões para ser olhado. O horror, espanto, choque duma cabeça viperina de olhar sinistro outrora vivo, transformou-se numa cabeça sangrenta, incapaz de voltar a olhar quem a quiser olhar numa superfície polida, sem temor, seguindo o exemplo de Perseu.

Medusa, a sinistra irmã de Esteno e Euríala, a única Górgona mortal que se tornou imortal depois de morta, traduz um percurso imagético singular que lhe outorga o estatuto de anti-heroína atípica, criado pela vontade involuntária dos deuses e voluntária dos homens, ou o de heroína inesperada, por ter sido seduzida ou violada por Poseidon, o supremo deus dos mares e eterno inimigo da fundadora da cidade ática de Atenas. A magia do olhar, pintado a óleo numa tela colada sobre uma rodela de madeira de choupo, há mais de quatrocentos anos pelo mestre lombardo do tenebrismo, nascido em Caravaggio, uma aldeia até então insignificante do norte da Italia, situada nas imediações de Bérgamo, representa um marco invejável na história das artes figurativas ocidentais executada a duas dimensões. 

Quando a visitei na cidade das flores, a olhei por cima das muitas cabeças vivas que olhavam a cabeça morta da mãe de Criasor e Pégaso, um gigante e um cavalo-alado. Sorte a minha ser alto e ter logrado olhá-lo no meio da sala da Galleria degli Uffici di Firenze que lhe deu o nome. Bem podia chamar-se de Caravaggio, se de facto se provar a suspeita do rosto grotesco da Górgona Medusa ser o do próprio Michelangelo Merisi, que lhe teria servido de modelo ideal, autorretratando-se a fazer uma carantonha refletida num espelho. Brincadeiras do grande mestre das trevas italiano. Ironias dos olhares dum dos mais enigmáticos pintores dos séculos de ouro da cultura pós-tridentina católico-romana. Uma obra-prima para olhar enquanto se é olhado com um olhar que há muito deixou de olhar.  

EPÍGRAFE
Por sua vez, Ceto gerou com Fórcis as Greias de belo semblante, com os cabelos grisalhos desde o nascimen-to, a quem os deuses imortais e os homens que andam pela terra chamam anciãs; a Penfredo de formoso peplo; a Énio, com uma capa açafroada; e as Górgonas, que vivem do outro lado do famoso Oceano à beira da Noite junto às Hespérides de voz harmoniosa: Esteno, Euríala e a infeliz Medusa. Esta era mortal, mas as outras duas eram imortais e isentas de velhice. Com ela só se deitou o do cabelo azul [Poseidon] no suave prado entre flores primaveris. Quando Perseu lhe cortou a cabeça, o emergiram o gigante Criasor e o cavalo Pégaso.
Hesíodo, Teogonia (c. séc. Ⅶ AEC, 270-282)

2 comentários:

  1. Uma belíssima representação de Medusa, que as restrições da pandemia me impediram mais ums vez de ver in loco... Infeliz Medusa, que foi transformada em monstro pelo seu pecado da vaidade, o mesmo pecado, mas mais exacerbado, da cruel Atena que, ironicamente, assim lhe deu a imortalidade.

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    1. In loco e em tempo de pré-pandemia também não se via grande coisa. As cabeças dos mirones num espaço relativamente pequeno não facilitavam em nada o olhar petrificado da Górgona Medusa. As reproduções da escudo de torneio pintado por Caravaggio ainda são a melhor solução.

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