« Et tout d'un coup le souvenir m'est apparu. Ce goût c'était celui du petit morceau de madeleine que le dimanche matin à Combray (parce que ce jour-là je ne sortais pas avant l'heure de la messe), quand j'allais lui dire bonjour dans sa chambre, ma tante Léonie m'offrait après l'avoir trempé dans son infusion de thé ou de tilleul. »Marcel Proust, Du côté de chez Swann (1913)
Se as madeleines são o motivo mais conhecido, referido e citado de Marcel Proust, comecemos por esses pequenos biscoitos de pasta mole em forma de barqueta ou concha de vieira mergulhada numa infusão de chá ou de tília, que quase abrem o Do lado / No caminho de Swann (1913), o primeiro painel do políptico romanesco Em busca do tempo perdido (1913-1927). A recordação dos quartos em que dormiu ao longo da vida, dos mundos de sonhos fugidios ou dos medos, angústias e terrores persistentes de infância invadem de modo obsessivo o imaginário do narrador-protagonista em noites de insónia ou de devaneio criativo. Avidamente e ao correr da pena, grava essas reminiscências na mente e regista-as vorazmente por escrito, antes que se desvaneçam no ar, como os eflúvios distantes das tisanas aromáticos preparadas pela tia Léonie em período de férias. É nas solitárias e silenciosas horas anteriores ao jantar, que a magia das imagens etéreas da lanterna-mágica exercia um fascínio mais intenso, ao projetar na opacidade impalpável das paredes, dos tetos e dos cortinados as aventuras lendárias de Golo e de Geneviève de Brabant, ou as tradicionais do Barba Azul, numa total iridescência multicolorida, intangível e sobrenatural.
Esta etapa inicial da Recherche está, também ela, repartida por três partes autónomas ou semi-independentes, a funcionar como outras tantas áreas de repouso, de serviço ou de provimento do caminhante pelos labirintos da memória. Dedica-a a convocar os espaços cénicos onde a sua fase de formação se representou, a fictícia Combray. As ruas e praças, as casas e jardins, os lagos e florestas, os parques e riachos, os habitantes da pequena cidade de província idealizada num livro são descritas profusamente e sem pressas de as arrumar como pano de fundo do relato. O mesmo se diga também dos monumentos e comércio local, dos hábitos alimentares, religiosos e culturais, do dia a dia dos diversos estratos sociais que dão vida à comunidade, da burguesia endinheirada com ambições aristocratas, dos senhores e serviçais, dos nativos e forasteiros. Há ainda tempo para falar da arte em geral, a pintada e a esculpida, bem como da filosofia, política e música, do teatro e atores-atrizes da moda, de livros e leituras, de autores reais e fabulados, em longas tiradas digressivas, a encher a mancha gráfica com períodos e parágrafos infindáveis, distribuídos página após página, em ritmo intenso, constante e infatigável.
O vizinho diletante e visita habitual da mansão de família - aquele que dá o nome ao tomo inaugural da heptalogia e já fora apresentado nas sequências de abertura das imagens perdidas do memorista - surge agora em grande plano na medial, toda ela dedicada a esquadrinhar os contornos de Um amor de Swann. Aquele que privava com o Presidente da República Francesa e o Príncipe de Gales, que tanto acudia aos mais elegantes salões aristocratas da moda como aos mais banais salões da burguesia parisiense, apaixonara-se por uma cocotte moldada no Segundo Império (1852-1870) e afinada pela Belle Époque (1871-1914). A vulgaridade da situação termina quando Charles Swann, un homme du monde, leva a fantasia ao ponto de substituir o estatuto de tida e mantida da demi-mondaine Odette de Crécy pelo de esposa, por representar para si a imagem acabada da fille de Jéthro, pintada a fresco na Capela Sistina por Sandro Botticelli, ou adornada com uma orquídea catleia no corpete.
Depois do segmento central da Busca preencher cerca de metade do tomo que o alberga, como se se tratasse dum romance dentro do romance, surge-nos a mais curta a funcionar como epígono natural do relato. O Paris do quai Conti oitocentista, situado na transição do final da década de 70, regressa ao início da de 90 de onde se tinha afastado. O relator de primeira pessoa retoma o protagonismo caído e passa a evocar os Nomes de países: o nome que povoaram os seus sonhos de menino, num derradeiro lanço de flashes ampliados pelo poder da imaginação. Dos quartos de Combray e do Grand-Hôtel de Balbec, transfere o delírio delirante para as cidades, lugares e sítios das regiões atlânticas da Bretanha e da Normandia ou italianas da Toscana, divaga pelos espaços urbanos de Florença, Veneza, Parma e Pisa, até que uma grande dor de garganta lhe interrompe os projetos de viajar e o obriga a substituir a fantasia etérea pela realidade tangível. O reverso da medalha surge ao rever Mlle Gilberte Swann nos Champs-Élysées. O amor-paixão surge e duas gerações reentram em cena.
Respirar, recuperando o fôlego!
ResponderEliminarMagnífica resenha, Prof., com a pedagogia literária que nos ensina a melhor desfrutar da leitura deste primeiro volume de Proust.
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