27 de novembro de 2023

Eça de Queiroz, do conto à novela, da civilização à cidade e as serras

«Eu possuo preciosamente um amigo (o seu nome é Jacinto), que nasceu num palácio, com quarenta contos de renda em pingues terras de pão, azeite e gado. Desde o berço, onde sua mãe, senhora gorda e crédula de Trás-os-Montes, espa-lhava, para reter as Fadas Benéficas, funcho e âmbar, Jacinto fora sempre mais resistente e são que um pinheiro das dunas. Um lindo rio, murmuroso e transpa-rente, com um leito muito liso de areia muito branca, refletindo apenas pedaços lustrosos de um céu de verão ou ramagens sempre verdes e de bom aroma, não ofereceria àquele que o descesse numa barca cheia de almofadas e de champa-gne gelado mais doçura e facilidades do que a vida oferecia ao meu camarada Jacinto.»
Eça de Queiroz, Civilização (1892)
«O meu amigo Jacinto nasceu num palácio, com cento e nove contos de renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival. No Alentejo, pela Estremadura, através das duas Beiras, densas sebes ondulando por colina e vale, muros altos de boa pedra, ribeiras, estradas, delimitavam os campos desta velha família agrícola que já entulhava grão e plantava cepa em tempos de el-rei D. Dinis. A sua quinta e casa senhorial de Tormes, no Baixo Douro, cobriam uma serra. Entre o Tua e o Tinhela, por cinco fartas léguas, todo o torrão lhe pagava foro. E cerrados pinheirais seus negrejavam desde Arga até ao mar de Âncora. Mas o palácio onde Jacinto nascera, e onde sempre habitara, era em Paris, nos Campos Elísios, n.º 202.»
Eça de Queiroz, A cidade e as serras (1901)

Se nos perguntarmos até quando os escritos do passado serão imortais se deixarem de ser lidos, a resposta só pode ser dada pelas leituras/releituras efetuadas no presente. Uma recente série televisiva transmitida pela RTP levou-me a revisitar as cenas da vida devota do padre Amaro, compostas no início da carreira literária do introdutor do romance realista entre nós. Uma polémica descabelada centrada na trasladação dos restos mortais de Eça de Queiroz para o Panteão Nacional, trouxe-me ao convívio d'A cidade e as serras (1901), a tal «novela fantasista» publicada postumamente pela Lello & Irmão, com o contributo editorial de Ramalho Ortigão e Luís de Magalhães na decifração e revisão do manuscrito deixado inédito pelo amigo.

Regressar a esta título concreto é regressar também aos bancos do secundário e ao estudo do cânone oficial então vigente. Recordo-me que deste autor só era permitido aceder à história exemplar do empedernido amante das tentações citadinas gaulesas que se convertera à excelência das serranias lusitanas. Um conveniente aproveitamento do luminoso beatus ille* horaciano humanista do Renascimento transferido de mão beijada para o teatro de operações salazaristas do Estado Novo. Surpreendentemente, ao abrir o volume que guardo da obra, apercebi-me nunca o ter lido até então. Abrira-lhe cuidadosamente as folhas dobradas dos cadernos cozidos no livro com um adequado corta-papel e deixara-o  por sublinhar e livre de qualquer tipo de anotações. A viagem pelo seu interior revelou-me, então, que na escola onde cursara o ensino básico o/a docente se limitara a abordar a versão reduzida da parábola novecentista contida na Civilização (1892), um conto duma vintena e meia de páginas publicado avulso na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro. Melhor economia seria difícil de encontrar.

Poucas diferenças separam a trama contada da novelada, assentes num ou noutro pormenor de percurso e na natural de ampliação de quatro para dezasseis capítulos a que foi submetida. Em ambos os casos, o testemunho pessoal do amigo íntimo do protagonista reparte-se equitativamente pelos dois espaços cénicos anunciados no título do livro impresso. No palácio de Paris, os moderníssimos conferençofones, teatrofones, gramofones, fonógrafos e telégrafos são referidos e exaltados à exaustão, para logo de seguida serem apontados em contraponto os desastres humilhantes das torneiras dessoldadas, dos elevadores emperrados, dos vapores encolhidos e da eletricidade sumida. No solar de Tormes, todos os contratempos citadinos se esvaem perante a simplicidade bucólica das serranias durienses. A densa névoa de tédio, os ocos bocejos de fastio e o embaraço de viver do supercivilizado Jacinto desaparecem mal pisa as terras de singela tranquilidade campestre e mergulha na idílica paisagem-berço dos seus avoengos, cujas ossadas se prontificara tresladar para a nova capela da Carriça. Em boa hora se mudara da cidade de exílio para a serra ali, onde acabará por se casar, gerar filhos e ser feliz. O happy end supremo a que poderia aspirar.

Lidos/relidos os livros, realço o episódio do peixe famoso da Dalmácia encalhado no elevador dos pratos do Palácio dos Campos Elísios, n.º 202 em Paris, o único que recordo com alguma precisão do meu contacto juvenil com a obra contada/novelada em ambiente escolar. Creio que, nos dias de hoje, juntarei às minhas memórias vindouras a ironia/sarcasmo do autor no relato minucioso os preparativos para o translado fúnebre dos restos dos Jacintos de Tormes para um novo jazigo erigido à sua importância senhorial. Terei ocasião de voltar a estas páginas de Eça de Queiroz quando os seus próprios despojos mortais forem depositados na antiga igreja de Santa Engrácia em Lisboa. As controvérsias familiares já por andam algum tempo. Aguardemos então o desfecho das guerras de alecrim e manjerona, sigamos atentamente o decorrer dos eventos e imaginemos o riso do glorificado ao papelão desempenhado por alguns dos seus bisnetos e outros tantos figurantes subalternos de segundas águas na facécia funerária representada ao vivo nos nossos dias. 

NOTA
(*) - «Beatus ille qui procul negotiis, | ut prisca gens mortalium | paterna rura bobus exercet suis, | solutus omni faenore, | neque excitatur classico miles truci | neque horret iratum mare, | forumque vitat et superba civium | potentiorum limina.»  Horatius, Epodi, 2,1 (30 AEC)

«Feliz é aquele que, longe dos negócios, | Como a antiga raça dos homens, | passa o tempo a trabalhar nos campos do pai com os seus próprios bois, | livre de todas as dívidas, | e não acorda, como o soldado, ao ouvir a trombeta sangrenta da guerra, | nem ele tem medo da ira do mar, | ficando longe do fórum e dos limiares arrogantes | de cidadãos poderosos.» Horácio, Épodos 2,1 (30AEC)

22 de novembro de 2023

As rainhas proscritas

  Beatriz de Borgonha & Joana de Trastâmara  
António de Holanda

A história oficial dos países é sempre contada pelos vencedores e quando, a posteriori, se aplicam os ditames do politicamente correto, tendemos a cair nos trilhos movediços do cronologicamente errado. Assim aconteceu com o destino dinástico de Beatriz de Borgonha e de Joana de Trastâmara, legítimas herdeiras de Fernando I de Portugal e Algarve e de Henrique IV de Castela e Leão. A seu tempo aclamadas, destronadas, proscritas, vencidas, banidas. Reduzidas de rainhas soberanas do país de origem a rainhas consortes do país vizinho.

À distância de três únicas gerações, as filhas reconhecidas do rei Formoso e do rei Impotente foram privadas do direito monárquico que as assistia de reinar. A ausência da apresentação dum conjunto de formalidades legais comprovadas cometidas por ambas foi substituída nos dois casos por hipotéticas acusações da infidelidade das mães, Leonor Teles e Joana de Avis, a Aleivosa e a Leviana. Um recurso eficaz seguido pelas mais altas esferas das duas cortes ibéricas em tempos agitados de guerra civil e de agitação política.

Nesta muito oportuna versão coroada de pecado original torna-se particularmente difícil encontrar um pai alternativo para a infanta portuguesa casada aos dez anos com o rei João I de Castela e Leão, remota que é a ideia de a atribuir ao conde galego João Fernandes Andeiro. Ficou assim privada dum epíteto aviltante idêntico ao da sua prima em terceiro grau, a Beltraneja, depois transformado num outro de cariz elogioso, a Excelente Senhora, ao tornar-se na consorte real do tio D. Afonso V de Portugal e Algarve.

Os reinados de facto e de jure de Beatriz de Borgonha e de Joana de Trastâmara nos seus torrões de berço terminam de vez após as batalhas de Aljubarrota (14.08.1385) e do Toro (6.04.1474), quando os respetivos cônjuges e reis titulares são vencidos pelos novos soberanos efetivos das duas coroas peninsulares, o Mestre de Avis do lado de cá da fronteira e Isabel-a-Católica do lado de lá. A longa agonia das rainhas consortes de jure uxoris começava então até ao seu desaparecimento final sem honra nem glória dignos de memória.

Num ato de reparação tardia, alguns catálogos reais começaram a incluir nas suas listagens de monarcas o Prior do Crato, teimando a omitir a sobrinha do rei da Boa Memória. É o que acontece, v.g., na Cronologia dos Reis de Portugal, publicada pela Casa Real Portuguesa na sua página oficial da Net. Ostracismo permanente que continua a marginalizar a última rainha aclamada, jurada e com moeda cunhada da primeira dinastia. Mistério insondável que o sangue azul dos Bragança saberá explicar, se estiver para  virado.

PENDÕES REAIS DE CASTELA-PORTUGAL & DE PORTUGAL-CASTELA
Juan I de Castilla y Beatriz de Portugal  |  Afonso V de Portugal e Joana de Castela

17 de novembro de 2023

Epopeia de Gilgameš, a história do grande homem que não queria morrer

«E chegou o momento fatal: ao amanhecer, caíram pãezinhos e aguaceiros de trigo, ao entardecer, examinei o aspeto do tempo: era assustador ver! Então entrei no barco e blo-queei a escotilha: quem a fechou, Puzur-Amurru, um barqueiro, dei-lhe de presente o meu palácio, com todas as suas riquezas. Quando o amanhecer brilhou, uma nuvem ne-gra se ergueu do horizonte na qual trovejou Adad (deus da Tempestade), precedido por Shullat e Hanish, arautos divinos que cruzaram as colinas e o país. Nergal (rei do Sub-mundo?) rasgou os suportes (das comportas celestes) e Ninurta (deus da Guerra e do Fu-racão) começou a transbordar as barragens de cima. Enquanto os deuses infernais, bran-dindo tochas, incendeiam o país inteiramente com sua conflagração. Adad espalhou seu silêncio mortal pelo céu, reduzindo à escuridão tudo o que era luminoso… despedaçou a terra como um pote. No primeiro dia que a tempestade soprou, soprou tão furiosa que... e o anátema passou sobre os homens, como a guerra. Ninguém mais via ninguém: do céu, as multidões não eram mais discerníveis, entre essas trombas d'água.»
Sînleqe'unnennî, Epopeia de Ghilgameš
 (Nínive: c. 1000 AEC; táb. xi, vv. 90-112)

Os gregos inventaram tudo (ou quase tudo) em termos literários. Por vezes limitaram-se a adaptar as formas universais de olhar o mundo ao seu modo especial de o fazer. Assim nas diversas variedades da autodescrição lírica em verso dos estados de espírito perenes que os povoavam. Noutras ocasiões, deram voz aos heróis do passado mítico-lendário e puseram-nos a dialogar no presente os episódios mais relevantes que haviam protagonizado enquanto seres viventes. Assim o fizeram na representação cénica de factos sérios da tragédia ou risíveis da comédia, com passagem obrigatória pela modalidade intermédia do drama satírico. As histórias, essas, passaram a ser contadas em prosa no romance, depois de terem sido cantadas em verso na epopeia homérica e nas imitações que se lhe seguiram.

A criação absoluta da poesia épica terá de recuar, todavia, alguns séculos a rondarem o milénio ou a ultrapassá-lo, para se situar no ambiente mesopotâmico povoado pela verve narrativa dos povos nativos do duplo sistema fluvial banhado pelo Tigre-Eufrates. A mais antiga obra literária conhecida centra-se na figura semi-histórica de Gilgameš (𒀭𒉋𒂵𒈩), 5.º rei da 1.ª dinastia de Uruk, que terá vivido entre 2700-2600 AEC. Tudo começa na língua isolada dos Sumérios com um conjunto de lendas que lhe estão associadas e ao seu servo, companheiro e amigo Enkidu (𒂗𒆠𒆕). Dispomos atualmente dos fragmentos de cinco delas, registadas em placas de argila entre 2300-2000 AEC, num total de 1055 versos. As versões do texto épico chegaram até nós compostas no idioma semita dos Acádios, a mais remota exumada em Babilónia (1750-1600 AEC) e a mais recente em Nínive (c. 1000 AEC). Importa-nos sobretudo esta última, guardiã dos 2503 versos recuperados dos cerca de 3000 originais compilados, refeitos ou editados em doze tábuas de escrita cuneiforme por um obscuro Sînleqe'unnennî, um exorcista cujo nome traduzido à letra seria «Oh-Deus-Sîn-recebe-a-minha-oração».

O extenso relato assírio-babilónico está centrado nas relações de grande cumplicidade de Gilgameš-Enkidu, estabelecida aquando das suas missões, aventuras e viagens conjuntas pelo universo que os vira nascer e crescer (I-VI). O transtorno causado pela perda prematura do parceiro leva o herói a encetar uma peregrinação solitária, em busca do segredo que lhe permitisse evitar a morte e alcançar a vida sem fim  (VII-XII). Fá-lo junto de Utanapištî (𒌓𒍣), o Supersábio mesopotâmico do dilúvio universal, aquele que, pela sua existência exemplar, conquistara entre todos o dom da imortalidade. O antecessor pré-biblico de Noé desilude-o completamente, ao informá-lo que quando os deuses criaram os homens lhes haviam destinado a morte, reservando para si sós a exclusividade da vida. A alegada origem sobrenatural do filho de Lugalbanda e Ninsuna, um rei semi-lendário de Uruk e uma deusa do panteão sumério, de pouco lhe valera. O plano humano do pai não lhe permitiria atingir o plano divino da mãe.

Os feitos prodigiosos do grande homem que não queria morrer não lhe permitiram alcançar a ventura de viver para todo o sempre. Viu-se impedido de evitar por motu próprio a descida aos subterrâneos cavernosos do Inferno, mas terá sido surpreendido ao ascender às alturas luminosas do Céu logo após o trespasse inevitável a que estava votado desde o nascimento, fruto da divinização póstuma que os seus súbditos terrenos do Aquém lhe deram de acesso imediato às esferas celestiais do Além. Mitos à parte, saibamos nós manter na lembrança a presença viva dos seus trabalhos heroicos efetuados quase cinco milénios. Proeza obtida também com a ajuda dos poetas épicos de então e académicos assiriólogos de agora, que criaram, gravaram, refizeram, decifraram e aclararam os milhares de versos que lhe foram dedicados. Lidos e relidos todas as versões hoje em dia disponíveis em livro real/virtual, urge deixar uma palavra de apreço a todos aqueles que o permitiram, com um destaque muito especial para Samuel Noah Kramer e Jean Bottéro, por me terem revelado os heróis sumérios e acádios da imaginação. Que vivam também eles para todo o sempre na nossa memória individual e coletiva.

11 de novembro de 2023

O São Martinho de Gil Vicente

Giorgi Vasari, Musicisti (1545)

A espada e a capa de S. Martinho no dia que o celebra... 

DIDASCÁLIA
O auto que adiante se segue foi representado à mui caridosa e devota senhora a rainha Dona Leonor na igreja das Caldas, na procissão de Corpus Christi, sobre a caridade que o bem-aventurado São Martinho fez ao pobre quando partiu a capa.
Vem São Martinho cavaleiro com três pajens, e diz o 

 

Pobre
Devoto señor, real caballero,

volved vuestros ojos a tanta pobreza,

que Dios os prospere vuestra gentileza:

dadme limosna, que de hambre me muero.

Martinho

Hermano ahora no traigo dinero:

vosotros, traéis que demos, por Dios?

Pajes

No ciertamente.

Martinho

       Entrambos a dos

no traéis que demos a este romero?

Pobre

No hay dolor, que en mí no lo sienta:

habed de mis males señor compasión.

Martinho

Quién ahora tuviese, daquesa pasión

la parte que tienes que más t'atormenta!

Pobre

Guárdeos Dios de tan grande afrenta;

Dios lo prospere con mucha salud.

dadme limosna, por vuestra vertud,

que mi gran pobreza no hay quien la sienta.

 

Martinho

No sé qué te dé, de dolor de ti,

ni puedo a tus males ponerte remedio.

Partamos aquesta mi capa, por medio;

pues otra limosna no traigo aquí:

Ruégote hermano, que ruegues por mí.

Pues sufres dolores nesta triste vida,

tu ánima en gloria será recebida

con dulces cantares, diciendo así:

Enquanto São Martinho com sua espada parte a capa, cantam mui devotamente uma prosa:

Laus et honor tibi sit rex Christe redemptor.