Celebra-se hoje sem pompa nem circunstância o feriado do Primeiro de Dezembro ou da Restauração da Monarquia Lusitana, separada de vez dos destinos da Hispânica e confiados a título pessoal e sem fusão ou anexação a um Rey de tódalas Españas. A união ibérica de 1580-1640 foi desfeita pela força das armas há 380 anos, quando os Áustrias Filipinos se renderam dinasticamente aos Braganças Joaninos. O estado de emergência nacional que vivemos em plena crise pandémica condicionou grandes ajuntamentos junto ao obelisco da praça dos Restauradores em Lisboa, onde uma escassa centena de manifestantes costuma comemorar a efeméride, compelida a fazê-lo, neste 2020 aziago de COVID-19, entre as 5h00 da manhã e as 13h00 da tarde. Provavelmente ninguém dará pela sua falta, salvo duma mancheia de mirones curiosos costumeiros e vezeiros nestas ocasiões e dum punhado de saudosistas monárquicos solidário com o atual pretendente ao extinto trono português, por regra presente na cerimónia, acompanhado de toda a autoproclamada família real.
O sonho duma Ibéria unificada não nasceu com a Monarquia Dual. É tão antigo quanto os primitivos reinos medievais, herdeiros diretos do legado romano-visigodo e manifestaram-se à vez nos diversos espaços políticos hispânicos, regidos por soberanos aparentados entre si. Dom Fernando Ⅰ de Portugal quis ser rei de Castela após o assassinato de Pedro Ⅰ pelo irmão, por ser bisneto legítimo de Sancho Ⅳ, enquanto o fratricida Enrique Ⅱ o era por via bastarda. O Formoso foi derrotado nas três Guerras Fernandinas em que se envolveu, travadas entre 1369 e 1382, dando assim origem ao Interregno de 1383-1385, quando o trono português foi disputado pelo Mestre de Avis e por Juan I de Castilla. A suspeita de bastardia materna que caiu sobre Dona Beatriz de Portugal acabou por recair em Juana la Beltraneja ou a Excelente Senhora, destituída do trono castelhano pelas mesmas razões, levando o tio materno e marido Dom Afonso Ⅴ de Portugal a declarar guerra a Isabel Ⅰ de Castilla e Fernando Ⅱ de Aragón e derrotado na Batalha do Toro em 1476.
As crises surgidas com as sucessões dinásticas problemáticas nem sempre foram resolvidas com recurso a confrontos bélicos travados pelos litigantes. Por vezes também se fizeram por via pacífica sem recurso ao poder de embate de exércitos rivais. Os Reis Católicos não se coibiram de casar a filha mais velha com dois herdeiros de Dom João Ⅱ. A Infanta Isabel, após enviuvar do Príncipe Dom Afonso, desposaria em segundas núpcias o futuro Rei Dom Manuel Ⅰ. Por golpes sucessivos do destino, a nova rainha consorte portuguesa ascenderia a herdeira dos pais, daria à luz o Príncipe Miguel da Paz e sucumbiria de parto. Pela primeira vez na história peninsular, as coroas de Portugal, Castela e Aragão teriam um só soberano, aceite por todos sem derrame escusado de sangue. De 24 de agosto de 1498 a 29 de julho de 1500 ‒ datas do nascimento em Saragoça e da morte em Granada do Príncipe de Portugal, Astúrias e Gerona ‒, o sonho ancestral da unificação peninsular pairou no horizonte. Depois desfez-se subitamente no ar. Durara menos de dois anos.
Dom Manuel Ⅰainda desposou a Infanta Maria, irmã da anterior consorte, mas os direitos ao duplo trono castelhano-aragonês já haviam transitado para a Princesa Joana-a-Louca, casada desde 1496 na Flandres com Filipe-o-Formoso, Duque titular da Borgonha. A tríplice aliança então gorada não seria muito diferente da lograda em 1580 com FilipeⅡde Espanha. O filho varão do Venturoso nunca pisou terra portuguesa e é pouco provável que alguma vez o viesse a fazer, a menos que os deveres dinásticos do momento assim o exigissem de modo categórico. Anteciparia aquilo que os três Filipes da Casa de Áustria fariam mais tarde, enquanto senhores do cetro lusitano. A política de aproximação entre as casas reais de Avis-Beja e de Trastâmara-Habsburgo só vingaria com o herdeiro de Isabel de Portugal e de Carlos Quinto, Sacro-Imperadores Romano--Germânicos e reis de Castela, Leão, Aragão e Navarra. O facto estava consumado e só findaria no Primeiro de Dezembro de 1640, efeméride que hoje se celebra sem pompa nem circunstância.
Armas de Fernando I, D. Beatriz, Afonso V, Joana, Miguel da Paz & Filipe II |
Foi sem pompa mas com um significado maior que o confinamento afinal lhe conferiu, pois a sensação de liberdade adiada acentua tudo o que se passa à nossa volta... Belo texto, Prof, sobre como se faz a história de um povo!
ResponderEliminarQue bela lição de história ... tão diferente da que nos impingiram na nossa infância.
ResponderEliminarA lição de história da nossa infância vivia obcecada com as grandezas perdidas do passado, levando os seus mentores a apagar estrategicamente a realidade que os envolvia no presente e daí a invenção de salvadores providenciais com os quais se identificavam e tentavam confundir, como verdadeiros «restauradores» duma opulência perdida que urgia «restaurar» e prolongar indefinidamente no futuro...
EliminarUma recordatoria primorosamente enquadrada no tempo que vivemos.
ResponderEliminarMuito bom.