17 de novembro de 2023

Epopeia de Gilgameš, a história do grande homem que não queria morrer

«E chegou o momento fatal: ao amanhecer, caíram pãezinhos e aguaceiros de trigo, ao entardecer, examinei o aspeto do tempo: era assustador ver! Então entrei no barco e blo-queei a escotilha: quem a fechou, Puzur-Amurru, um barqueiro, dei-lhe de presente o meu palácio, com todas as suas riquezas. Quando o amanhecer brilhou, uma nuvem ne-gra se ergueu do horizonte na qual trovejou Adad (deus da Tempestade), precedido por Shullat e Hanish, arautos divinos que cruzaram as colinas e o país. Nergal (rei do Sub-mundo?) rasgou os suportes (das comportas celestes) e Ninurta (deus da Guerra e do Fu-racão) começou a transbordar as barragens de cima. Enquanto os deuses infernais, bran-dindo tochas, incendeiam o país inteiramente com sua conflagração. Adad espalhou seu silêncio mortal pelo céu, reduzindo à escuridão tudo o que era luminoso… despedaçou a terra como um pote. No primeiro dia que a tempestade soprou, soprou tão furiosa que... e o anátema passou sobre os homens, como a guerra. Ninguém mais via ninguém: do céu, as multidões não eram mais discerníveis, entre essas trombas d'água.»
Sînleqe'unnennî, Epopeia de Ghilgameš
 (Nínive: c. 1000 AEC; táb. xi, vv. 90-112)

Os gregos inventaram tudo (ou quase tudo) em termos literários. Por vezes limitaram-se a adaptar as formas universais de olhar o mundo ao seu modo especial de o fazer. Assim nas diversas variedades da autodescrição lírica em verso dos estados de espírito perenes que os povoavam. Noutras ocasiões, deram voz aos heróis do passado mítico-lendário e puseram-nos a dialogar no presente os episódios mais relevantes que haviam protagonizado enquanto seres viventes. Assim o fizeram na representação cénica de factos sérios da tragédia ou risíveis da comédia, com passagem obrigatória pela modalidade intermédia do drama satírico. As histórias, essas, passaram a ser contadas em prosa no romance, depois de terem sido cantadas em verso na epopeia homérica e nas imitações que se lhe seguiram.

A criação absoluta da poesia épica terá de recuar, todavia, alguns séculos a rondarem o milénio ou a ultrapassá-lo, para se situar no ambiente mesopotâmico povoado pela verve narrativa dos povos nativos do duplo sistema fluvial banhado pelo Tigre-Eufrates. A mais antiga obra literária conhecida centra-se na figura semi-histórica de Gilgameš (𒀭𒉋𒂵𒈩), 5.º rei da 1.ª dinastia de Uruk, que terá vivido entre 2700-2600 AEC. Tudo começa na língua isolada dos Sumérios com um conjunto de lendas que lhe estão associadas e ao seu servo, companheiro e amigo Enkidu (𒂗𒆠𒆕). Dispomos atualmente dos fragmentos de cinco delas, registadas em placas de argila entre 2300-2000 AEC, num total de 1055 versos. As versões do texto épico chegaram até nós compostas no idioma semita dos Acádios, a mais remota exumada em Babilónia (1750-1600 AEC) e a mais recente em Nínive (c. 1000 AEC). Importa-nos sobretudo esta última, guardiã dos 2503 versos recuperados dos cerca de 3000 originais compilados, refeitos ou editados em doze tábuas de escrita cuneiforme por um obscuro Sînleqe'unnennî, um exorcista cujo nome traduzido à letra seria «Oh-Deus-Sîn-recebe-a-minha-oração».

O extenso relato assírio-babilónico está centrado nas relações de grande cumplicidade de Gilgameš-Enkidu, estabelecida aquando das suas missões, aventuras e viagens conjuntas pelo universo que os vira nascer e crescer (I-VI). O transtorno causado pela perda prematura do parceiro leva o herói a encetar uma peregrinação solitária, em busca do segredo que lhe permitisse evitar a morte e alcançar a vida sem fim  (VII-XII). Fá-lo junto de Utanapištî (𒌓𒍣), o Supersábio mesopotâmico do dilúvio universal, aquele que, pela sua existência exemplar, conquistara entre todos o dom da imortalidade. O antecessor pré-biblico de Noé desilude-o completamente, ao informá-lo que quando os deuses criaram os homens lhes haviam destinado a morte, reservando para si sós a exclusividade da vida. A alegada origem sobrenatural do filho de Lugalbanda e Ninsuna, um rei semi-lendário de Uruk e uma deusa do panteão sumério, de pouco lhe valera. O plano humano do pai não lhe permitiria atingir o plano divino da mãe.

Os feitos prodigiosos do grande homem que não queria morrer não lhe permitiram alcançar a ventura de viver para todo o sempre. Viu-se impedido de evitar por motu próprio a descida aos subterrâneos cavernosos do Inferno, mas terá sido surpreendido ao ascender às alturas luminosas do Céu logo após o trespasse inevitável a que estava votado desde o nascimento, fruto da divinização póstuma que os seus súbditos terrenos do Aquém lhe deram de acesso imediato às esferas celestiais do Além. Mitos à parte, saibamos nós manter na lembrança a presença viva dos seus trabalhos heroicos efetuados quase cinco milénios. Proeza obtida também com a ajuda dos poetas épicos de então e académicos assiriólogos de agora, que criaram, gravaram, refizeram, decifraram e aclararam os milhares de versos que lhe foram dedicados. Lidos e relidos todas as versões hoje em dia disponíveis em livro real/virtual, urge deixar uma palavra de apreço a todos aqueles que o permitiram, com um destaque muito especial para Samuel Noah Kramer e Jean Bottéro, por me terem revelado os heróis sumérios e acádios da imaginação. Que vivam também eles para todo o sempre na nossa memória individual e coletiva.

1 comentário:

  1. Interessante como todas as histórias que anunciam desastres naturais descrevem fenómenos fantásticos... Gosto da história de Gilgamesh, que se torna mais apelativa do que a de Noé, pois insere-se num clima mitológico...
    Obrigada, Prof, por ter partilhado o conhecimento sobre estes autores!

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