«Numa das minhas tentativas de comer um hambúrguer no pão com elegância social, numa hamburgueria junto ao Campus da Penha da Universidade do Algarve, tive a companhia de um colega com o qual almoço regularmente. A nossa conversa fluía, enquanto elegantemente tragávamos os hambúrgueres, sobre a construção da personalidade e a existência de Deus. O meu amigo revelou como a Servidão humana de W. Somerset Maugham tinha sido essencial na sua rejeição de Deus. Relatou-me com emoção a cena em que o Philip Carey (figura central do romance) reza a Deus, com toda a sua fé, para acordar no dia seguinte curado da deficiência física com que nascera (com um pé boto). Ao confrontar-se com a eternidade das limitações impostas pelo seu corpo, o jovem descobre que a normalidade é a coisa mais rara do mundo e apaixona-se pela arte e pela literatura. Como referia o meu colega, os romances conseguem responder às nossas inquietações, às inquietações de juventude e de idade adulta.»
O meu amigo e colega António Guerreiro lançou este fim de semana na Fnac da Guia as suas Crónicas em pedra grés (2023), uma seleta de cem olhares diferentes do nosso olhar de todos os dias sobre o mundo, publicados no jornal Terra Ruiva de Silves nos últimos vinte anos. Assisti à apresentação acompanhado de um conjunto de companheiros das lides académicas que atualmente só revejo em situações muito especiais como esta. De todos esses reencontros ocasionais, destaco o da Teresa Maló Sequeira, a moderadora da sessão, também ela parceira de práticas letivas que já tivera como aluna duma licenciatura em educação. Faço-o pela forma dinâmica como conduziu a apresentação do autor-obra, como promoveu a partilha de diálogos entre todos os participantes e contribuiu para o sucesso da iniciativa.
Ainda não li com olhos de ler a totalidade de testemunhos de vida vividos aqui coligidos. Fá-lo-ei na devida altura, sem pressas nem sobressaltos. Uma leitura em diagonal pelo índice remeteu-me para alguns temas que na época da escrita havíamos comentado, regra geral à hora de almoço dum qualquer restaurante das imediações do local de trabalho. Não os vou comentar aqui. Ultrapassaria em muito a dimensão duma única folha A4, o tamanho adequado para um texto desta natureza. Abrirei uma excepção para aquela que transcrevi parcialmente na epígrafe, pelo simples facto de ser o protagonista do episódio relatado e trazido ao domínio público.
A «Servidão», assim se chama a tal crónica destacada nesta crónica de crónicas, está repartida por dois momentos tidos a curta distância de espaços e tempos. O primeiro ocorreu na Hamburgueria da Baixa, sito próximo do Campus da Penha. Lembro-me de ter então pedido um Escangalhado, cujo nome já anuncia as dificuldades acrescidas do seu manuseamento, sobretudo para quem alguma dificuldade para lidar com esta sandes super-recheadas de proteínas animais, alguns vegetais avinagrados e uma profusão de molhos coloridos servidos à vontade e apetite do freguês. Uma companheira de repasto elucidou-nos a esse propósito o modo expedito como resolvera o problema, ou seja, com o mero recurso à faca e garfo. Assim o fizemos também nós os dois e saiu-nos às mil maravilhas. Uma originalidade banal, mas elegante e eficiente.
A segunda parte foi representada a dois num café local que servia uns pratos simples à hora do almoço e cujo verdadeiro nome me escapou completamente. Conhecíamo-lo pelo Vermelhinho, a cor dominante naquele espaço simpático e ambiente familiar que a austeridade de má memória da troika fechou e o confinamento imposto pelo covid-19 impediu de reabrir. A temática da personalidade e existência de deus ter-nos-á surgido por um qualquer motivo que agora me escapa. Em contrapartida, a alusão à Servidão humana de Somerset Maugham é fácil de apontar pela parte que me toca. Trata-se, aliás, dum dos livros da minha vida, como já referi várias vezes aqui neste espaço e me escuso de repetir. Sem me querer alongar muito no assunto, direi que passados os verdes anos e instalado na geração grisalha, mantenho as opiniões então proferidas. De facto, há certos juízos que quando se traçam são difíceis de alterar ou impossíveis de afastar.
Felizes reencontros para renovação de antigas cumplicidades...
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