« Pour qui a grandi dans le " roman national " portugais, le roi Sébastien est un des monarques les plus connus d'une longue lignée. C'est un personnage d'envergure proverbiale, présent dans des romans, des chansons ou des histoires tentées d'ironie, comme celle qui évoque son retour à Lisbonne par un matin brumeux sur l'estuaire du Tage. Cette intimité collective avec le nom d'un roi ayant régné il y a quatre-cent cinquante ans vient du rôle historique de celui-ci dans la fin de la dynastie des Avis mais, surtout, de l'investissement mythique dont il a été l'objet au fil des siècles. »André Belo, Le roi Sébastien de Venise (2023)
El-Rei Dom Sebastião (1574-1578) é de longe um dos mais populares monarcas portugueses. Nasceu órfão de pai e foi abandonado pela mãe aos quatro meses de vida. Subiu formalmente ao trono com três anos de idade e tomou as rédeas do poder aos catorze. Morreu sem honra nem glória com vinte e quatro em Alcácer-Quibir, para onde partira solteiro e sem descendentes declarados que o substituíssem à frente dos destinos do reino que queria universal e acabaria absorvido pelo império castelhano do tio. Esta a história que contam os manuais de história oficiais. A versão tradicional que seguiu o seu destino trágico no Norte de África trilhou todavia os sendeiros que propiciariam a gestação do mais consistente e duradouro mito/contramito da cultura nacional, o Sebastianismo. Aquele que já fora apelidado o Desejado, passou a ser designado o Encoberto. O malogrado neto de Dom João III e Carlos V, o sobrinho de Filipe II, teria sobrevivido ao desastre marroquino e andaria por aí perdido à espera do melhor momento para se revelar como o senhor legítimo dos desígnios lusitanos.
A desdita do último cavaleiro cruzado com vocação messiânica dos tempos modernos atravessou fronteiras e conquistou os principais géneros/subgéneros da criação artística e ensaística. Foi cantado e representado nos palcos líricos e dramáticos, lido e recitado nas epopeias em verso e em prosa, foi estudado comentado um pouco por todo o lado à escala local e global. Por mais duma vez, as andanças académicas, os impulsos da curiosidade ou os apelos do puro lazer levaram-me a privar com uma ou outra dessas obras. A última a chegar à minha presença foi-me enviada de Rennes por uma amiga de longa data, que a viu exposta com grande destaque numa livraria central da capital da Bretanha. Trata-se da versão francesa da tese de André Belo, Morte e ficção do Rei Dom Sebastião (2021), publicado pelas Éditions Chandeigne, com o título bem mais sugestivo de Le roi Sébastien de Venise, histoire d'une rumeur (2023). Li-o de cabo a rabo com o espanto sempre estampado no rosto à medida que ia tomando conhecimento desses tais rumores desenvolvidos nas três centenas de páginas do livro. À distância de quatro séculos e meio de devir histórico, torna-se particularmente difícil entender o modo como as pretensões do «Rei de Veneza» acolhessem tantos partidários, apesar da manifesta fragilidade dos argumentos apresentados em sua defesa.
A recusa de aceitar a morte do jovem paladino da fé cristã em terra de mouros, o filho de príncipes e neto de reis e imperadores, levou os súbditos fiéis a acalentarem a tese que estaria vivo e se refugiara num local seguro, de onde galoparia num cavalo branco, numa manhã de nevoeiro, para recuperar o reino que lhe fora arrebatado. De pouco serviu aos incrédulos o reconhecimento do corpo do soberano logo após a batalha e a sua trasladação de Alcácer-Quibir para Ceuta (1578) e Lisboa (1582), onde ainda hoje repousa num mausoléu monumental erigido no Mosteiro dos Jerónimos (1682). A lenda do Adormecido começa a ganhar forma, encorajando os mais audazes a darem asas à imaginação e a converterem-se num ápice no providencial messias salvador que regressava aos seus domínios europeus e resgatar para a Casa de Avis trono arrebatado pelos Áustrias Castelhanos. A História regista as pretensões de quatro desses aventureiros, conhecidos por Rei de Penamacor (1584), Rei da Ericeira (1585), Rei do Madrigal (1590) e Rei de Veneza (1598-1603). É deste último, precisamente, que trata o volume agora dado à estampa e aqui trazido à baila.
Marco Tullio Catizone, o legítimo nome do falsário calabrês, sustentou a sua pretensão durante cinco longos anos. Os primeiros rumores começaram a surgir nas vésperas da morte de Filipe II de Castela e conheceram o seu desfecho espectável um quarto de século após o insucesso trágico da Batalha dos Três Reis. De fantasia em fantasia, de prisão em prisão, de processo em processo, a confissão obtida sob tortura confirma a acusação do crime de lesa-majestade, cometido por usurpação de identidade, falsificação de assinatura e insígnias reais, ditando a amputação da mão direita, a execução na forca, o esquartejamento e a exposição pública da cabeça e do membro decepado. Mais uma vez e após a leitura exaustiva de todas as peripécias aliadas à fraude sebástica, torna-se particularmente difícil de entender que as diferenças físicas detetadas, a incompetência linguística do português e a ausência duma memória credível tenha tido tão pouco peso no desmascaramento imediato do embusteiro. Outros tempos, outras vontades, outros interesses políticos jogados à escala das potências hegemónicas de então. Os pormenores mais recônditos deste episódio insólito vivido na passagem da centúria de quinhentos para a de seiscentos são minuciosamente dissecados pelo espírito académico de André Belo, cujos resultados registados em livro poderão ser consultados em dois idiomas recentemente publicados. Aproveitemo-los se, de facto, a matéria tratada continuar a povoar o nossos imaginário individual e coletivo.
Marco Tullio Catizone [Madrid - Museo del Prado] |
« Le faux Sébastien était un homme originaire de Calabre, identifié à partir du procès de Naples sous le nom de Marco Tullio Catizone; s'il a avoué son nom devant le vice-roi de Naples et lors du procès de Sanlúcar, il est à chaque fois revenu sur ses aveux. Pourtant, il ne ressemblait pas au roi Sébastien, sa mémoire était lacunaire et il maitrisait très mal la langure portugaise.»André Belo, Le roi Sébastien de Venise (2023)
Muito interessante! Não conhecia essa "projecção" do sebastianismo!
ResponderEliminarTambém desconhecia. Concordo consigo - muito interessante. Nestes tempos de populismos, ecoa particularmente a cegueira perante as evidências, a vontade de acreditar, o desejo de um salvador e quem se aproveita disso.
EliminarSão espantosas as histórias que ainda hoje se contam sobre Dom Sebastião, o rei Desejado, Encoberto e Adormecido. Parece que algumas delas também povoaram o imaginário brasileiro, como Vargas Llosa documenta n’ «A guerra do fim do mundo»(1981).
EliminarDesconhecia este texto! Mt. obrigada, Prof.
ResponderEliminarConcordo, noite muito bem passada.
ResponderEliminarTambém gostei muito de saber!
ResponderEliminarNão conheço este autor... Sobre o mito do sebastianismo, li "A ponte dos suspiros", de Fernando Campos, uma narrativa muito interessante.
ResponderEliminarE a dificuldade de encontrar livros em francês, nas livrarias! E eu que gosto tanto de pôr as mãos nos livros… de ver muitas capas! Que prazeres que se perdem!
ResponderEliminarCompreendo bem essa sensação dolorosa de privação táctil dos livros acabados de sair dom prelo, agravada com o desaparecimento galopante das livrarias que ainda persistem a resistir. Continuo com dificuldade de me adaptar a esta cultura recente de comprar em linha, mas lá teremos de nos render às novas práticas que agora nos envolvem...
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