Paula Rego, Salazar a vomitar a pátria (1960)[Lisboa, Centro de Arte Moderna, Gulbenkian] |
No tempo da outra senhora, os destinos do país eram sabiamente regidos por duas entidades magnas: um mandachuva absoluto e um pau-mandado submisso. O primeiro dava pelo nome pomposo de presidente do conselho e o segundo de chefe de estado, por horror inato às designações comuns de Primeiro Ministro e Presidente da República. Era ao herdeiro efetivo e incontestado da Ditadura Militar [1926-1928] que competia designar o suposto dirigente máximo do regime, a preceder o processo simulado da sua eleição/nomeação legal. Tudo a bem da nação como mandavam os figurinos.
Fui gerado numa fase intermédia de troca do consulado do primeiro pau-mandado do Estado Novo para o segundo. Reinava então no seu poder ilimitado o dinossauro excelentíssimo de Santa Comba, arvorado na categoria de mandachuva-mor interino, sem direito a um número de ordem na listagem oficial dos chefes de estado / presidentes da república, ocupando o lugar interposto entre o 11.º e o 12.º inquilino do Palácio de Belém. Fraca consolação para quem era de facto senhor disto tudo e preferia ditar as suas leis a partir do Palacete de São Bento, modesto como se fazia pintar.
O primeiro delfim do antigo seminarista de Viseu e lente de Coimbra aqueceu o lugar pouco tempo. Quando cheguei à primária, o retrato do segundo pau-mandado de serviço já dera lugar ao do terceiro. É desse que me lembro pendurado na parede da sala de aulas, ao lado do do manda-chuva vitalício e com um crucifixo de permeio. Ótima companhia para as três filas de meninos que olhavam a santíssima trindade com o respeito que lhe era devido, a dos que nunca andavam descalços, a dos que nunca andavam calçados e a dos medianos como eu que alternavam o pé calçado e o descalço.
No preparatório e secundário não havia fotos de mandachuvas e paus-mandados pendurados nas paredes. Lembro-me de ter visto o marinheiro almirante na inauguração solene da escola nova que substituíra de vez a improvisada escola velha há muito a gritar um tirem-me daqui urgente. Nunca vi ao vivo os dois caciques maiores que entretanto se haviam sucedido no poder. É que o quase eterno Manholas das Botas caíra entretanto da cadeira e sido trocado pelo promotor das soporíferas conversas de família televisivas. Tardou décadas mas nada acrescentou ou arrecadou o render da guarda.
O levantamento militar das Caldas de há 50 anos apanhou-me já em Lisboa. Para trás haviam ficado as brincadeiras infantis com os meninos da rua junto ao chafariz d'el-Rei em tempo duma Segunda República envergonhada ou dos colegas de escola no recreio das aulas e nos trilhos e clareiras secretas da mata real da cidade. O prelúdio para o movimento dos capitães de abril e da revolução dos cravos estava dado. Assim as novas aragens que pairam no horizonte nos permitam celebrar dentro de dias a queda definitiva e em paz dos mandachuvas e paus-mandados recentes de tão má memória.
Vamos fazendo um esforço para manter viva a memória sinistra da nossa juventude, tentando evitar que alguns se armem em "varredores" e tentem limpar o que não pode nem deve ter qualquer oportunidade de ser lavado.
ResponderEliminarInfelizmente ainda existem pessoas a vomitar .
ResponderEliminarPor bem podiam morrer no seu próprio vómito.