4 de novembro de 2022

Adiantados & Atrasados

Albert Samuel Anker
Die Dorfschule von 1848
«Quando fui para a escola do Largo do Leão, a professora da segunda classe, que ignorava até onde o recém-chegado teria acedido no aproveitamento das matérias dadas e sem qualquer motivo para esperar da minha pessoa quaisquer assinaláveis sabedorias (reconheça-se que não tinha obrigação de pensar outra coisa), mandou-me sentar entre os mais atrasados, os quais, por virtude da disposição da sala, ficavam numa espécie de limbo, à direita da professora e de frente para os adiantados que deviam servir-lhes de exemplo.»
José Saramago, As pequenas memórias (2006)

Quando entrei na escola primária do Bairro da Ponte, a disposição da sala já apresentava um aspeto mais moderno do que o pintado por Albert Samuel Anker, num quadro de época de meados de oitocentos, ou do que o descrito por José Saramago n'As pequenas memórias (2006), ocorridas no primeiro quartel de novecentos. Em vez da ocupação algo desordenada da sala de aulas suíça, ou da repartição portuguesa dos alunos nos grupos dos adiantados e dos atrasados, o espaço pedagógico que me foi dado frequentar já considerava a existência duma categoria intermédia, a fila dos assim-assim, colocada como fronteira natural intransponível entre a fila dos bons e a fila dos burros.

Sentei-me sempre na primeira carteira da fila dos meninos que não eram nem muito bons nem muito maus. Vestiam-se com o conforto que a estação exigia. Sandálias no tempo quente e botas no tempo frio. Não tinham de engraxar os sapatos todos os dias como os colegas que se sentavam junto às janelas, mesmo em frente da secretária do professor, ou de andarem descalços o ano inteiro, como os encostados à parede da parte mais escura da sala. À frente dos remediados, só se via o quadro negro, apagador e giz, um crucifixo com uma jarra de flores aos pés e os retratos muito bem alinhados do Senhor Presidente de Conselho de Ministros e de Sua Excelência o Chefe de Estado.

No dia em que não identifiquei os retratados da parede pelos nomes completos que lhes eram devidos, apanhei o primeiro par de reguadas punitivas do percurso escolar. Só mais tarde percebi a razão do castigo. Salazar e Thomaz foram dois nomes que nunca mais deixaram de ocupar os meus pensamentos mais sombrios. Ainda hoje evito pronunciá-los sem uma razão muito concreta para o fazer. Aprendi então que nem sempre se devem chamar os bois pelos nomes próprios. Há sempre um ou outro apelido à disposição para os substituir. Tarde demais. Na altura aprendi também o verdadeiro significado do provérbio popular que reza à gerações ser a palavra de prata e o silêncio de ouro. 

Soube há pouco que o professor que me acompanhou nas quatro classes da primária morrera num acidente de viação, não sei se há muito se há pouco tempo. Não voltarei a vê-lo numa das minhas cada vez mais raras visitas às Caldas da Rainha. Durante algum tempo ainda pensei poder reencontrá-lo num qualquer recanto do velho burgo estremenho. Rever aquele a quem as más línguas apelidavam de Manequim Inglês que tanto dava umas reguadas e ponteiradas a preceito quando para aí estava voltado como dava dava aos intervalos uns toques na bola com os sapatos engraxados de ir à missa, sem despir o fato completo príncipe de gales ou tirar a gravata de seda de estampado colorido.

8 comentários:

  1. Outros tempos, em que o ensino era rigoroso em todos os sentidos. Tive duas professoras primárias, ambas exigentes, mas queridas. As reguadas eram mais partilhadas entre as alunas, a despique pela sabedoria. E atenção às aulas, pois a falta dela valeu-me duas malvadas reguadas de uma colega mais dura. Mas o convívio era são, sem nenhuma divisão que semeasse estigmas na turma. Recordações da infância que muiro contribuíram para o que somos hoje...

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    1. Guardo boas recordações da minha escola primária apesar das reguadas e ponteiradas choverem sem se saber muito bem porquê. A prática do castigo físico era corrente na época e só à distância dos anos e das décadas é que a dor se faz sentir com mais intensidade. O mesmo se diga da lembrança dos meninos da fila dos descalços com quem os calçados evitavam de brincar. Hierarquias que então se estabeleciam entre os mais novos para serem seguidas mais tarde pela vida fora. Pedagogias obsoletas que nos dias de hoje ainda prevalecem em muitas mentes saudosistas dos nossos dias…

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  2. Nesse tempo ainda não havia conhecimento para, à boca pequena, dizer que do lado esquerdo estava o Botas e do lado direito o Corta-Fitas, ladeando o Crucificado.
    A régua, a cana-da-índia, a batinha branca e o respeito incondicional pela moral e pelos bons costumes, era o "pão nosso de cada dia" que nos iria garantir, no futuro, o reino dos céus ... se não pecássemos.

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    1. Histórias d'Arthur d'Algarbe6 de novembro de 2022 às 09:16

      Esqueci-me de referir a batinha branca com o nome bordado no lado esquerdo, bem por cima do coração. O Botas e o Corta-Fitas (também apelidado de Cabeça de Abóbora) são epítetos que só se diziam em surdina e que os meus ingénuos 6 anos de idade ainda desconheciam...

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  3. As minhas memórias da escola primária são bem mais suaves, bairro novo citadino, escolas recém-construídas, fui sempre uma aluna mediana, os castigos corporais nas meninas eram raros, assim o recordo.
    Só bem mais tarde me apercebi de outras realidades…

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    1. Desconheço o ambiente das escolas femininas que nessa época ficavam localizadas bem afastadas das masculinas. Pode ser que as mestras fossem mais brandas do que os seus colegas de ofício...

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  4. Seus escritos provocam evocações de variados matizes... Estudei em escolas católicas, apesar da família não professar a religião, mas ter em mente a adaptação ao país acolhedor. Recordo a grande rigidez e a nítida separação de categorias, idêntica à retratada no post. No curso primário, não haviam castigos físicos, mas forte pressão psicológica. No então "Ginásio", subsequente, onde era necessário um exame de admissão em que o Português era eliminatório, fui colocado novamente numa escola confessional, regida por padres agostinianos espanhóis. Disciplina rígida e, sim, castigos corporais. Tapas e principalmente cintadas, com os longos cintos pretos que os padres envergavam, pendentes da cintura, como chicotes... Nessa altura, a selecção intelectual já se encontrava melhor vincada, sendo evidente a presença de um pequeno contingente, creio 10%, de alunos provenientes de meio mais carenciado, que as escolas privadas eram obrigadas a integrar. Esses, normalmente, eram tidos como "maus da fita", mais velhos, maiores e por vezes violentos.

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    1. Mutatis mutandis, a realidade não divergia muito nas duas margens do Atlântico. Os castigos físicos restringiam-se ao ensino primário mas a lavagem ao cérebro ideológica acompanhava todos os graus de ensino até que a queda do regime em 74 modificou completamente a situação. Outros tempos, outras vivências, que convém recordar nos dias que correm para impedir a sua repetição nos vindouros...

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