23 de agosto de 2024

As presas escravas do homem lobo

Anónimo, c. 1570-1580
(Coleção Berardo)
«Sendo embora limitada a utilização comercial em larga escala do trabalho es-cravo, o recurso aos escravos estava generalizado dentro da maioria das socie-dades africanas. A existência deste grande número de escravos era sinal de que havia um dinâmico mercado interno de escravos, e comércio intracontinental dos mesmos. Portanto, muito antes da abertura das rotas da África Ocidental-Atlântico existia um comércio interno e externo de escravos. Através do norte e para leste, já se fazia exportação de escravos em grande número para fora de África pelo menos seis séculos antes da chegada dos Portugueses.»
Herbert S. Klein, O comércio atlântico de escravos.
Quatro séculos de comércio esclavagista (1999)

Homo homini lupus 

A escravatura não foi um monopólio exclusivo de Portugal, Europa ou Ocidente. Inscrita na mais profunda herança genética da humanidade, a sua presença está atestada desde que existem registos escritos, havendo indícios que seria praticada muitíssimo antes, nos alvores da civilização, talvez na transição da fase dos caçadores-recoletores nómadas para a dos agricultores-pastores sedentários. Passou pela Suméria, polis gregas, Roma e demais potentados mesopotâmicos e mediterrânicos, atravessou toda a medievalidade cristã e islâmica, tendo chegado aos tempos modernos, no velho e nos novos mundos descobertos e conquistados.

Muito do comércio atlântico de escravos deveu-se à estreita parceria dos traficantes europeus com os negociadores africanos. Os panos, armas e álcool, cedidos pelos primeiros, eram trocados por homens, mulheres e crianças, capturados pelos segundos nas tribos rivais. Ficavam todos a ganhar em termos políticos, económicos e sociais, refletido nos milhões de seres humanos enviados para as colónias americanas e estados independentes ali criados. Nas vésperas da guerra civil, o número atingia a cifra astronómica de quatro milhões de negros destituídos de liberdade e em absoluta dependência dos senhores esclavagistas.     

Ganha aqui força a conhecida locução latina homo homini lupus (= o homem é o lobo do homem), parafraseada, comentada e adaptada, entre outros, por Plauto, Séneca, Erasmo, Rabelais ou Hobbes. Nesta sentença da sabedoria milenar, não cabe separar os lobos bons dos maus. No que toca ao esclavagismo, todos os homens trazem em si a semente do bem e do mal. A cor da pele, o local de origem, a convicção religiosa, são perfeitamente irrelevantes. Todos eles a conheceram, exerceram e defenderam. Todos eles resistiram a ferro e fogo à sua abolição. Muitos continuam a segui-la na calada da noite ou das teias policiais.

Comemora-se hoje o Dia Internacional em Memória do Tráfico de Escravos e da sua Abolição, data da Revolução de São Domingos, no Haiti, em 1791. O processo começou cedo e acabou tarde. O embrião da erradicação global deste flagelo será seguido pelas potências coloniais europeias muito depois. Os britânicos marcaram o ponto de partida em 1834 e os portugueses em 1869. Curiosamente, as ex-colónias só o terão feito ulteriormente. A Lei Áurea Brasileira, v.gr., teria de esperar até 1888 para ver a luz do dia. Digamos que as forças conservadoras se haviam mudado de armas e bagagens para o outro lado do mar oceano.

1 comentário:

  1. Verdade incontestável: o homem será sempre o lobo do homem, está nos genes... A escravatura assume outras formas nos nossos dias, por vezes onde menos se esperaria, em países desenvolvidos, e sob formas também violentas...

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