«Había repetido aquel viaje cada 16 de agosto a la misma hora, con el mismo taxi y la misma florista, bajo el sol de fuego del mismo cementerio indigente, para poner un ramo de gladiolos frescos en la tumba de su madre. A partir de ese momento no tenía nada que hacer hasta las nueve de la mañana del día siguiente, cuando salía el primer transbordador de regreso.»Gabriel García Márquez, En agosto nos vemos (2024)
Quando já ninguém esperava que tal pudesse acontecer, soou entre nós a notícia que um dos expoentes máximos das letras hispânicas e universais tinha deixado inédita uma derradeira obra, que a Penguin Randon House prometia publicar a 6 de março, dia de aniversário do autor. O anúncio, divulgado nos finais de dezembro passado, deixou todos os amantes de livros ávidos por ter nas mãos essa lídima prenda de Natal de Gabriel García Márquez, o prometedor do En agosto nos vemos (2024). Pensei desde logo numa hipotética travessia da fronteira para adquirir, in situ, um original ainda a cheirar a tinta e no linguajar nativo do seu criador. Sem muitas delongas de permeio, deparei-me com um exemplar a chamar por mim no expositor dos mais recentes lançamentos da Fnac aqui do burgo. Surpresas que as livrarias e livreiros às vezes nos dão, a porem-nos literalmente de boca aberta e de olhos arregalados.
Senti uma estranha dificuldade de começar a ler a escassa centena de páginas deste romance/novela ou mero conto, por se tratar ‒ tanto quanto se sabe ‒ das últimas palavras compostas por Gabo. Uma emoção profunda, semelhante à experimentada aquando da divulgação também póstuma das Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas (2014) de José Saramago, com a agravante, neste caso, de terem chegado até nós inacabadas e reduzidas a três únicos capítulos. Sorte a nossa de termos agora ao nosso inteiro dispor um texto completo, editado e anotado por Cristóbal Pera, e rematado com um Prólogo de Rodrigo e Gonzalo García Barcha, filhos do escritor.
Resisto à tentação de resumir aqui neste espaço cada uma das seis partes da história. Seria uma traição inqualificável para todos aqueles que a queiram desfrutar sem a intervenção gratuita de terceiros. Limito-me a remeter para um dos parágrafos iniciais do relato acima transcrito em forma de epígrafe ou para a sinopse registada na contracapa do volume que me abriu as portas para este rito anual de Ana Magdalena Bach ao túmulo da mãe. Faço-o também em termos simbólicos num 16 de agosto, muito embora as visitas da protagonista tenham terminado há cerca duma década, coincidindo, grosso modo, com o decesso do próprio obreiro da resenha estival.
A notícia destas visitas sazonais em dia certo ao cemitério duma ilha caribenha desconhecida esteve em risco de não ver a luz do dia. O enfraquecimento das capacidades mentais do novelista colombiano exigiu-lhe um derradeiro exercício de memória para levar a tarefa a bom termo, sem prescindir para tal do perfecionismo de escrita tão bem conhecido de todos. Por diversas vezes, manifestou a vontade de destruir cada uma das várias versões já compostas, por não terem atingido o desenho final almejado. Aproximava-se, assim, de Virgílio, que, nas vésperas da morte, sentindo-se sem forças para rever a Eneida (19 AEC), deixou instruções para que o poema fosse queimado, por não ter atingido a perfeição por si exigida. Felizmente para todos nós que os últimos desejos destes dois criadores de heróis da imaginação foram ignorados por familiares e amigos. A uns e outros só podemos endereçar o nosso mais sentido agradecimento. Mantiveram ainda mais vivo o legado poético do seu estro artístico. Como terá dito o próprio Gabriel García Márquez: la memoria es a la vez mi materia prima y mi herramienta. Sin ella, no hay nada.
David de las Heras, cobertura da capa |
Tenho muita curiosidade em ler o último romance de Gabriel García Márquez e de reencontrar a magia da sua escrita criativa e poética. Devo-lhe das melhores horas da minha vida como leitora...
ResponderEliminarÉ um texto muito curto mas de enorme sensibilidade estética, a provocar um forte travo na boca ao aproximar-se o final da história...
EliminarObrigada, amigo, pelo teu texto fantástico e tão apelativo à leitura da obra póstuma de Gabo, como tu referes. É incontornável a sua obra. Adoro-O e tens toda a razão, não se pode deixar essa pérola em mãos alheias! Vou à Liv. Barata quanto antes!
ResponderEliminarJá li algumas resenhas sobre o último livro de Garcia Márquez, umas a elogiar, outras nem por isso.
ResponderEliminarDa resenha apresentada pelo Artur, foi a que mais gostei. Obrigada.
Obrigado pela preferência. Não sei o que os outros disseram só sei que gostei daquilo que li. Uma história singela contada com a verdade das palavras de alguém que as sabe dizer. Essa a realidade que conta...
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