«Países desde há muito independentes, Portugal e Espanha partilham no entanto uma familiaridade de séculos, que não decorre apenas da contiguidade geográfica, mas foi forjada por relações dinásticas, ligações económicas, laços políticos e estreitas afinidades linguísticas, resultantes da sua pertença comum ao mesmo tronco da cultura latina [...] As peças do Museu Nacional de Arte Antiga expõe agora ao público contam uma parte dessa história, através de obras de arte compradas por igrejas, conventos e mosteiros, ou reunidas em coleções que permanecem até hoje por estudar a fundo. Do século xiv ao início do século xx, estão aqui presentes as grandes correntes da pintura espanhola, cada época representada pelos artistas mais emblemáticos do seu tempo.»Pedro Adão e Silva, Identidades partilhadasLisboa: MNAA - IN, 2023, p. 7
«A exposição dá conta dos estreitos laços que uniram os dois países ao longo da história, e fá-lo através de obras que são o resultado desse movimento humano e artístico. O catálogo proporciona, de resto, uma investigação sobre as características específicas desse intercâmbio artístico e as apropriações de elementos italianos e flamengos daí resultantes, bem como sobre o processo de reelaboração desses elementos de modo a torná-los próprios. Esta exposição implicou também a participação duma série de obras, algumas inéditas e outras às quais foi alterada a atribuição, que contribuem, de um modo notável, para o conhecimento dos pintores espanhóis e que demonstram a presença de artistas espanhóis em Portugal.»Miquel Iceta i Llorens, Identidades partilhadasLisboa: MNAA - IN, 2023, p. 9
Uma exposição temporária de arte visita-se, regra geral, uma única vez, podendo, todavia, ser repetida numa ou noutra ocasião especial, quando o interesse despertado a tal convide e as possibilidades de o fazer assim o permitam. Em ambos os cenários, o contacto com as telas exibidas é limitado. Um catálogo, em contrapartida, folheia-se, olha-se, aprecia-se, tantas vezes quantas as desejadas a qualquer hora do dia ou época do ano. É o que se passa com estas Idades Partilhadas (2023-2024), que, depois de terem revelado ao público visitante do Museu Nacional de Arte Antiga das Janelas Verdes a «Pintura espanhola em Portugal», criada desde a origem medieval dos dois países peninsulares até à atualidade, se encontra agora compilada, comentada e contextualizada nas páginas copiosamente ilustradas do volume preparado pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda. Abro-o, vejo-o e admiro-o.
O desenho estrutural do repositório impresso da mostra patenteada em Lisboa é inaugurado com dois prefácios redigidos pelos ministros ibéricos da cultura, Pedro Adão e Silva e Miquel Iceta i Llorens, logo seguido de quatro ensaios assinados por outros tantos académicos luso-hispânicos. Palavras de circunstância usuais nestes espaços, mas, mesmo assim, plenas todas elas dum forte cariz informativo e fino pendor artístico para visitas e leitores. Assim, enquanto Fernando Bouza descreve as relações históricas de Portugal e Espanha (sécs. xv-xix), no Entre elos e rejeições, Benito Navarrete Prieto centra-se no Século de Ouro e no cânone ibérico, nas designadas Identidades partilhadas, homónimas do designativo genérico do certame. Por seu lado, Joaquim Oliveira Caetano releva o contributo espanhol para a pintura portuguesa, num Cruzar a fronteira, ao passo que Ramiro A. Gonçalves se encarrega de traçar algumas notas sobre a presença de pintura espanhola em coleções privadas lisboetas (sécs. xviii-xx), no Entre permanências e ausências.
A resenha exaustiva neste espaço da totalidade das oitenta e duas peças reunidas na maior pinacoteca nacional resulta impraticável. O mesmo se diga para a identificação das três dezenas de críticos de arte que tornaram público o produto da sua investigação, centrada na meia centena de pintores representados na coleção e distribuídos cronologicamente por seis núcleos temáticos, a saber: [1] Gótico e Primeiro Renascimento, [2] Maneirismo, [3] Retrato de Corte, [4] Primeiro Naturalismo, [5] Barroco, [6] Academia e Romantismo. De mencionar, mesmo assim, os nomes sonantes de Luís de Morales, El Greco, Alonso Sanches Coello, José de Ribera ou Murillo, para além dum retrato elaborado na oficina de Velázquez, ou, ainda, os contributos de Vasco Pereira Lusitano, Baltazar Gomes Figueira e Josefa de Óbidos, três criadores portugueses bem conhecidos com formação pictórica sevilhana.
Guardei para o remate desta crónica de quadros olhados/descritos o óleo sobre tela escolhido para ilustrar o cartaz promocional do evento e a capa do repositório impresso. Depois de ter sido visto até há pouco como um original de Clemente Sánchez, este São Sebastião passou agora a ser tido como uma criação maior de Francisco de Zurbarán (1598-1664). As caraterísticas intrínsecas da obra não sofreram o mais pequeno beliscão com esta nova atribuição, mas, ao revés, o seu valor extrínseco de mercado alterou-se de modo exponencial. Lances de qualidade/quantidade que o mundo das artes conhece muito bem. Com a cara e o corpo lavados após o restauro a que foi submetido, o santo oriundo do Convento de Nossa Senhora da Graça, em Lisboa, poderá a partir deste momento ser admirado com outros olhos numa posição de destaque reforçado no MNAA. Palpites de experiência feitos.
Francisco de Zurbarán, São Sebastião (c. 1634-1636) |
Sem comentários:
Enviar um comentário