
«Os deuses falam aos homens com vozes diferentes, conforme eles são capazes de entender. Os jovens ouvem essas vozes no estrépito das batalhas ou no ato do amor, os velhos aprendem a escutar de outra maneira. Outrora, também eu ouvi a voz dos deuses no amor, na guerra, nos sonhos e na tempestade ‒ até mesmo na fala de outros mortais. Agora, que já passaram oitenta invernos na minha vida ‒ se é que não deixei escapar alguns sem dar por tal ‒ resta-me o silêncio.»João Aguiar, A voz dos deuses (1984)
Podemos dizer com alguma propriedade ser o romance histórico tão antigo como o próprio romance, modo narrativo autónomo nascido há mais de dois milénios no mundo helenístico, pese embora a forma de retratar os eventos em determinado momento do passado tenha vindo a adaptar-se ao jeito de efabular específico dos tempos em que foram traçados. João Aguiar iniciou o seu percurso pela escrita criativa com A voz dos deuses (1984), uma crónica ficcionada centrada em factos ocorridos no decurso da guerra empreendida pela República Romana para se apoderar da totalidade da Península Ibérica, recorrendo para tal às memórias imaginárias dum companheiro de armas de Viriato. O início duma carreira dum quarto de século de sucessos repartidos por vários géneros e que só uma partida inesperada do jornalista, romancista e ensaísta interromperia abruptamente.
O despertar, consagração e imortalização do maior herói lusitano, que os tempos pré-romanos conheceram, é trazida até nós pela pena de Tongétamo, sacerdote do grande deus Endovélico e guardião do seu santuário. Assim reza a nota de apresentação sucinta da entidade enunciadora participante na relação. A ação salta da Hispânia Ulterior e Citerior romanas já conquistadas para a Mesopotâmia de entre Tagus e Anas resistente às forças invasoras. O palco dos eventos atestados desloca-se ainda a algumas localidades do antigo reino de Cineticum a sul e da Calécia a norte, para além de privilegiar a intermédia Lusitânia celta. A linha temporal abre com o nascimento do narrador em 164 AEC, em Balsa, e fecha com a notícia da sua morte em 79 AEC, no santuário do deus a quem prestava culto. Os dados mais relevantes situam-se, porém, entre 147-139 AEC, os sete anos correspondentes de comando do grande caudilho local, aquele que a História registou e a Lenda divinizou até à dimensão do Mito.
Na advertência prévia aos leitores do livro, o seu autor real tem o cuidado de destacar o facto de se tratar duma obra de ficção e não dum ensaio histórico rigoroso. Esta chamada de atenção não obstou a ter trazido para as suas páginas um retrato mais próximo do insigne guerrilheiro bárbaro do que a tradicional imagem fantasiosa pintada pela posteridade. Tendo em vista os traços peculiares do paradigma novelesco seguido, a tessitura do relato joga com a alternância ajustada entre os eventos imaginados e os acontecidos, resultando daí uma autobiografia precisa de Tongétamo alegado neto dum Rei dos Brácaros, e vislumbres dos momentos por si testemunhados do percurso existencial de Viriato, aquele que fora investido com as vírias de comandante supremo das forças lusitanas.
Obedecendo um romance histórico de primeira pessoa a um princípio de verosimilhança extremo, a notícia da morte do cronista cónio, com sangue lusitano, fenício e turdetano, seja feito por uma entidade exterior ao relato central, mais precisamente por M. Hirtuleio, numa carta dirigida de Arcóbriga a Quinto Sertório. Nessa epístola, informa ter encontrado, nos escombros do antigo santuário de Endovélico, os escritos do seu falecido guardião. A fonte fictícia do documento fica assim revelado, remetendo-nos simultaneamente para a segunda parte dum díptico literário sobre a resistência lusitana à ocupação romana, publicado na década seguinte com a designação de A hora de Sertório (1994), que me apressei a resgatar da estante onde tem estado depositado desde então. A leitura está a decorrer com muito prazer e algumas surpresas de permeio. Um dia destes darei conta do seu teor, assim a voz dos deuses ostracizados do passado mo não impeçam de fazer.
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