27 de outubro de 2025

Paraísos Perdidos

Henri Rousseau - Foret vierge au soleil couchant (1910)
[Kunstmuseum Basel - Schweiz]
“The mind is its own place, and in it self | can make a heaven of hell, a hell of heaven.”
John Milton, Paradise Lost, (1667: I, 254-255)

 LOCUS AMŒNUS                                     

Os anos dourados da minha infância foram passados alternadamente entre três paraísos irremediavelmente perdidos logo à entrada da pré-adolescência. Situavam-se esses locus amœnus distantes na Estremadura natal, como então se designava toda a região que servia de linde natural entre o Setrentrião duriense e o meridião alentejano e se mantém, para todos os efeitos, uma das mais antigas províncias históricas portuguesas. Estou-me a referir à Praia da Areia Branca, na costa atlântica ocidental; o povoado da Abrigada, nas faldas da Serra de Montejunto; a herdade de Rio Frio, na Península de Setúbal. Por ora, vou-me ficar por este último recanto habitado pelas minhas memórias remotas.

A memória mais nítida que guardo deste paraíso perdido provém do perfume intenso a eucalipto, emanado duma pequena mancha florestal plantada a meio da vasta propriedade rural. Formava como que um enclave arborizado, a rodear uma pequena capela caiada de branco, ladeado pela imponente casa senhorial com ar palaciano e pelo aglomerados de habitações modestas do pessoal assalariado, dispostas à volta dum recinto descoberto comum. Era neste pátio que ocorria grande parte das minhas brincadeiras e da garotada localNunca entrei na casa dos patrões, onde a minha tia servia como cozinheira, nem na casa do santo desconhecido, que uma das minhas primas cuidava.

Fora deste recinto descoberto contíguo ao casario dos assalariados residentes, o paraíso perdido abria-se para os amplos espaços a perder de vista. Havia as valas com água corrente de rega dos arrozais, boas para pescar se se fizesse o silêncio exigido pelo meu pai e observar os touros bravos que pastavam no outro lado da lezíria. Noutros espaços mais abrigados do sol, havia a possibilidade de apanhar um ou outro sapo e uma ou outra enguia, no meio dos tanques naturais rodeados de agriões, enquanto as vizinhas faziam a lavagem da roupa e a punham a corar na relva. Momento também de merendar em plena natureza, numa altura em que ainda se não falava em piqueniques.

O final das diversões ao ar livre era marcado pela corrida veloz do Joly rumo à oficina de carpintaria onde o dono trabalhava. Ignoro se havia alguma sineta ou se era só ele que a ouvia soar. Com a chegada dos dois a casa, ceávamos todos com o cachorro a dar ao rabo à volta da mesa. Seguia-se uma conversa animada à beira da lareira, sentados nuns banquinhos de madeira feitos pelo meu tio. Por vezes, dávamos uma saltada à coletividade, para brincar com a criançada, ver televisão ou assistir à projeção dum filmeLembro-me das autoridades presentes nessas ocasiões me terem impedido de ver O Terceiro Homem, que só visionei muito mais tarde depois de atingida a maioridade.

Tempus fugit, diziam os latinos e nós repetimos por tudo e por nada. A Areia Branca e a Abrigada dos meus avós  muito se desvaneceram do meu horizonte de eventos, embora possam ser revisitados num espaço geográfico necessariamente transformado. O Rio Frio dos meus tios desapareceu mesmo do mapa e nem sequer permite uma visita fugaz para matar saudades. Esteve para ser o novo aeroporto de Lisboa. Projeto abandonado como muitos outros nascido em mais de meio século de devir histórico. Com o olhar de decano que o tempo cavou, recupero os paraísos perdidos da infância através dos exercício de memória que o meu olhar de decano vai conseguindo alcançar.

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