
« Par la diversité de son humeur, tour à tour mystique ou joyeuse, babillarde, taciturne, emportée, nonchalante, elle allait rappelant en lui mille désirs, évoquant des instincts ou des réminiscences. Elle était l’amoureuse de tous les romans, l’héroïne de tous les drames, le vague elle de tous les volumes de vers. Il retrouvait sur ses épaules la couleur ambrée de l’odalisque au bain ; elle avait le corsage long des châtelaines féodales ; elle ressemblait aussi à la femme pâle de Barcelone, mais elle était par-dessus tout Ange ! »
Junto a mim tenho o romance dos romances de Gustave Flaubert, o Madame Bovary (1857), aquele que marcaria a entrada em cena das estéticas realistas da ficção francesa e europeia. Para grande espanto meu, o exemplar resgatado da estante cá de casa, adquirido numas férias de verão passadas em Dinard, no início de setembro de 79, surgiu-me imaculadamente livre de qualquer tipo de anotação comentada ou sublinhada, a revelar-me o facto algo insólito de nunca o ter lido neste quase meio século de silêncio discreto. O razoável conhecimento que tenho da obra ter-me-á sido transmitida por uma qualquer versão filmada com difusão televisiva. Refeito da surpresa, lancei-me à tarefa de o fazer pela primeira vez. Substituir as imagens em movimento do pequeno ecrã pelas palavras registadas nas cinco centenas de páginas que há muito tempo deixaram de cheirar a tinta acabada de imprimir.
São conhecidos os traços autobiográficos do romancista, novelista e contista normando oitocentista mesclados na ficção. Comprovei-o na leitura recente de duas delas, publicadas em data posterior à destas crónicas de costumes provincianos, com uma especial incidência na Educação sentimental ou n' Um coração simples. Tal não ocorre na sua obra magna, ausente da tessitura narrativa com tanta clareza. Ao invés, tudo leva a crer terem as suas fontes sido bebidas num conjunto de faits divers dispersos, divulgados aquando da escrita e devidamente identificados e comentados pelos seus estudiosos mais chegados. O conhecimento dos espaços cénicos onde decorre a ação e passou grande parte da vida, adstritos do seu país natal, terá ajudado a criar a atmosfera ideal para relatar com verosimilhança os eventos ali ocorridos no mundo real e no ficcionado.
Emma Bovary segue de muito perto o percurso desviante de Delphine Coutourier, Louise Pradieu ou Marie Lafarge, possíveis modelos reais do drama burguês imaginado no fictício vilarejo de Yonville-l'Abbaye e na factual cidade de Rouen. Porém, a passagem daquelas histórias acontecidas para as imaginadas não é feita dum modo linear. Trai como todas elas o marido em pensamentos e em atos, mas o seu destino é depois adaptado pela instância enunciadora a uma variante pessoal mais adequada às exigências dum romance. Permanecem as aventuras amorosas extraconjugais, a aversão crescente pela vida matrimonial, o acumular de dívidas consideráveis impossíveis de saldar, a aquisição a crédito de numerosos objetos de luxo, a espiral infindável de mentiras para encobrir o adultério, a atração inexorável para a queda iminente num abismo impossível de evitar. E, como seria fácil de prever, culmina com o suicídio da protagonista. O remate final das restantes pontas soltas no relato seguem os trâmites expectáveis nas estéticas do novo género literário acabado de nascer, empenhado em retratar fielmente a vida, tal qual ela acontece no dia a dia e com toda a veracidade ao seu dispor.
No final da escrita da saga passional de Charles e Emma Bovary, o seu relator acusou o cansaço extremo sentido de trazer à luz do dia uma tal profusão de infortúnios doentios de contorno folhetinesco. Rapidamente resolveu trocar o cenário contemporâneo gaulês pela esfera da antiguidade cartaginesa espelhada na Salammbô. Lidas as três partes e trinta e cinco capítulos do livro, experimentei uma certa solidariedade com o autor. Longe da vista longe do coração, diríamos nós, apesar de nos esquecermos uma ou outra vez que a verdade dos heróis/anti-heróis dos romances só existir, de facto, nas páginas impressas do faz-de-conta que as alojam. É que o uso e abuso dum ultrarrealismo desmesurado arrisca-se a cair nas malhas dum pseudorrealismo irreal. A reação às alegadas ofensas à moral pública e religiosa, detetadas nos seis números publicados pela Révue de Paris (1856), não logrou mesmo assim impedir que essa tal Histoire des adultères d'une femme de province ‒ como lhe chamou o advogado de acusação no processo judicial que lhe foi movido ‒ circulasse em livro e esgotasse sucessivas edições até à presente data. O poder criativo e libertador da literatura tem destas coisas, para proveito e deleite dos leitores de todos os tempos.
«Pela diversidade do seu humor, ora mística ora alegre, ora tagarela, ora taciturna, ora extasiada, ora indiferente, ela despertava nele mil desejos, evocando instintos ou reminiscências. Era a amante de todos os romances, a heroína de todos os dramas, o vago ela de todos os volumes de versos. Ele encontrava nos seus ombros a cor âmbar d’a odalisca no banho; ela tinha o longo corpete das castelãs feudais; assemelhava-se também à mulher pálida de Barcelona, mas era acima de tudo um Anjo!»
 
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