«E assim, uma bola azul elétrico invisível suspensa pelos muitos ventos que povoam o firmamento, a almazinha adiava e ansiava o instante em que se tomaria de perdida paixão e se tornaria uma alma brasileira para todo o sempre, contribuindo para entender-se este fenômeno lembrar que, sim, as almas não aprendem nada, mas sonham desvairada-mente.»
João Ubaldo Ribeiro, Viva o povo brasileiro (1984)
Tomei conhecimento efetivo da existência de João Ubaldo Ribeiro no preciso momento em que os noticiários televisivos anunciavam o seu desaparecimento e lhe teciam os encómios costumeiros nestas ocasiões. Mais uma vez se provou que a visibilidade dos vultos da cultura só se intensifica com a chegada da morte. Mea culpa exclusiva neste caso. O nome do novo habitante do Parnaso das letras até já me deveria ser familiar, por ter sido laureado com o Prémio Camões em 2008. A leitura dos artigos da imprensa escrita e as notas publicadas no ciberespaço, também elas laudatórias, convidou-me a procurar uma livraria e adquirir algum dos seus romances. A tarefa efetuou-se sem dificuldades e até obtive um desconto especial, por ter escolhido a figura literária do dia ou da semana. Decidi-me de imediato pelo Viva o povo brasileiro (1984). Deixei-me cativar pela frase registada na capa e atribuída ao pai do autor: «Livro que não fica em pé, não presta». Obedeci ao reco-mendado por Manoel Ribeiro e as 850 páginas que conformam o volume escolhido aguentaram-no sem cair. Levei-o para casa para testar pessoalmente se ao critério quantitativo demonstrado se juntaria a qualidade poética produzida.
Tirei a prova dos nove à beira-mar. Ocupei uma parcela considerável das férias de verão a ouvir as histórias com história dentro enviadas do outro lado do Atlântico há precisamente três décadas. Gostei de ouvir tudo aquilo que as vozes selecionadas pela ficção resolveram confidenciar-me. Só para mim. Como se tratasse dum segredo que exigia uma cumplicidade partilhada de emissor-recetor único. Ilusões que a arte criadora dos artistas consegue oferecer aos seus admira-dores. Permito-me discordar do ponto de vista veiculado pela edi-tora portuguesa e enquadro a obra como uma lídima saga do povo brasileiro, uma vez que está ancorado na pesquisa da identidade nacional enunciada explicitamente no título. Opiniões não se discu-tem. Muito menos quando resultam dos apontamentos subjetivos traçados no decorrer duma viagem virtual pelo universo da ficção. As histórias secretas reveladas não funcionam como um contraponto da história oficial documentada, mas sim como um complemento fundamental para vislumbrar a verdade dos factos, situada na fronteira imprecisa do real e do imaginário.
Trata-se mesmo dum grande relato que se ocupa da vida duma família com muitos feitos guerreiros ocorridos num passado remoto, com muitos ramos parentais à mistura, fruto duma miscigenação étnica multissecular oriunda de três continentes. Índios americanos, negros africanos e brancos europeus. Genealogias legítimas indese-jadas substituídas por outras inventadas ao sabor da maré ou dos interesses dos seus membros fundadores mais proeminentes. Num dos galhos dessa árvore feita com pessoas, surge uma gesta caboca de cor acobreada. Num outro, uma gesta mulata de cor parda. Entre um e outro ou para além dos dois, uma gesta sem mestiçagem declarada, cor bronzeada a esconder um sangue azul inexistente. Portugueses, espanhóis, holandeses, franceses e ingleses também são chamados à colação, para enriquecerem a paleta e darem um colorido inconfundível ao poleiro das almas, cada uma delas à procura duma série de encarnações que lhes permita desenhar o genuíno espírito e sabedoria do bom povo brasileiro.
Os heróis e os anti-heróis pululam no texto. Os consagrados pelo poder instituído e os guardados na memória das gentes. Entre uns e outros não existem coincidências de catalogação. A língua dos pretos ou a língua dos brancos com que são contados os seus feitos é que condiciona a sua colocação numa das duas listagens. Surgem todos eles em Itaparica, uma ilha perdida na imensidade das Terras da Vera Cruz e acabam por se espalhar por todo o território do país. Pedaços sincopados de vida a dar unidade a uma grei que se carateriza pela diversidade. A esperança na Irmandade do Homem mora nas laudas de papel em branco revestido a negro com as palavras convocadas com engenho e arte por um escritor iluminado. Há também espaço para definir a fé como uma maneira de ver o mundo capaz de tornar possíveis aquelas coisas que se deseja que aconteçam. O Espírito do Homem continua a vagar sobre as águas da grande baía de todos os santos, errante mas confiante, a encarnar os seres que o inspiram e lhe dão razão de lutar, a demudar-se nas almas brasileirinhas, tão pequetitinhas, mas com uma ânsia tão grande de existir.
De João Ubaldo Ribeiro, conheço só as crónicas que enviava semanalmente para um jornal de Lisboa , Creio que até viveu em Portugal. Mas foi o bastante para nunca mais esquecer a forma como utilizava e manuseava as palavras, numa escrita neste caso normalmente cheia de humor corrosivo e certeiro...
ResponderEliminarNa badana esquerda da mais recente edição do «Viva o povo brasileiro» (2009), lê-se que se mudou com a família para Lisboa em 1981, como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, onde estabeleceu relações com alguns escritores portugueses.
ResponderEliminarLi Viva o Povo Brasileiro, em 1996, numa edição do Círculo de Leitores, naquele tempo, infelizmente, não deixava escrito breves notas. Devia regressar a ele...
ResponderEliminar"Há(ja) também espaço para definir a fé como uma maneira de ver o mundo capaz de tornar possíveis aquelas coisas que se deseja que aconteçam." Parênteses meu. Lindo, Artur. Parabéns, pegou mesmo no âmago do sentir nativista.
ResponderEliminarNão conheço este título de João Ubaldo Ribeiro, um dos autores brasileiros que muito me agrada pela sua ficção colorida e criativa e cujo conhecimento devo ao Círculo de Leitores. "Sabe-se muito pouco", bem o diz o autor, pelo que agradeço mais esta interessante sugestão, Prof!
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