HOMEM DO CHAPEIRÃOIluminura do Códice de Paris (BNF) e Painel do Políptico de Lisboa (MNAA) |
A tradição quando não existe inventa-se. Aproveita-se um eco longínquo, elimina-se o ruído de fundo e amplia-se o volume do som desejado. O murmúrio, o boato e o rumor ganham peso no círculo máximo de audição e o dogma instala-se com armas e bagagens no corpo da notícia feita, refeita e contrafeita. A figura do Infante D. Henrique tem originado algumas das distorções mais bem-sucedidas do devir histórico português. Símbolos, memórias, recordações, usos e hábitos são misturados ao sabor do acaso e o mito entra em cena para contentamento de alguns e desespero de outros.
A associação académica duma das mais jovens universidades do país fixou-se na lendária Escola de Sagres e passou a vestir-se ao modo do Navegador. Um traje pré-renascentista caído em desuso há cinco séculos passou a estar na moda num meio pós-moderno com três décadas de existência. Tudo isto num abrir e fechar de olhos, sem pestanejar, fazendo tábua rasa do vazio criado entre os dois eventos evocados. O espaço e o tempo reais são simultaneamente encurtados e ampliados. Sem pudor ou problema de consciência. Tudo é possível na arte de criar patinas de conveniência.
O mesmo percurso seguiu a Confraria do Vinho do Porto. Pensada em 1945 e criada em 1964, passou a adornar-se desde 1982 como o Infante de Sagres terá feito nos tempos áureos da Casa de Avis. O facto de ter nascido na cidade foi suficiente para transformá-lo no patrono da irmandade. A partir de então, todos os chefes de estado ou representantes de casas reais, individualidades ou instituições de relevo, que tenham emprestado alguma notoriedade à causa, são entronizados como cancelários, infanções e cavaleiros. O famoso chapeirão quatrocentista outorga ao ato a dignidade exigida.
Desfaça-se o mito, explique-se a lenda, reponha-se a história e fica-mos com uma tradição de pacotilha, a movimentar-se em sentido contrário à verdade dos factos acontecidos. Uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma como alguém já disse em tempos e a mim me apetece repetir agora. A Escola de Navegadores terá funcionado na Universidade de Lisboa e a identidade do Homem do Chapeirão continua mergulhada numa polémica com mais de cem anos de vida. Anterior, para todos os efeitos, à invenção por medida dum conjunto de tradições em contramão ou em clara contrafação.
Se os rapazes querem enfiar o barrete, deixá-los enfiar. Depois que bebam uma cerveja gelada ou um porto à temperatura ambiente. E não se esqueçam de dar um viva ao Infante, ainda que este nunca tenha usado o tal chapeirão com uma manga pendurada ou se tenha vestido ao uso flamengo. O que interessa é festejar até ser dia...
ResponderEliminarAssociações de vária ordem abraçam qualquer mito para se ataviarem e ganhar um lugar ao sol, alguns sem merecerem sequer vestir a referência. É um dos pecados do homem, a vaidade vã...
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