«Je porte dans mon prénom l’humanité naissante, mais j’appartiens à une humanité qui s’éteint […] A long terme, tous les fils d’Adam et d’Éve sont des enfants perdus.»Amin Maalouf, Les desorientés (2012)
Conheço Amin Maalouf há tantos anos quantos aqueles que nos se-param da sua estreia na ficção. Foi um verdadeiro coup de foudre, um amor à primeira vista. A vida do diplomata e geógrafo magrebino de Granada, Hassan-al-Wazzan ou Giovanni Leone de Medici, dito Leone l'Africano (1488-1548), despertou-me a atenção para a leitura continuada e cronológica de toda a sua obra romanesca e ensaística. Sem exceção e com um prazer sempre renovado. Entrei em contacto com os percursos atribulados de vida de Omar Khayyām (1048-1131), poeta persa do vinho, filósofo, matemático e astrónomo, autor dos versos sarcásticos do Rubaiyat. Acompanhei a trajetória profética de Manes (214-276), pintor, médico e teólogo, criador sassânida do Maniqueísmo, religião gnóstica baseada na luz. Percorri com uma curiosidade ávida de entender a visão alternativa da invasão da Terra Santa pelos cristãos, explanada nas páginas alucinantes de Les croisades vues par les Arabes (1983). Uma experiência única que um dia talvez conte em pormenor.
A última viagem que encetei pelo universo literário por si arquitetado durante três décadas levou-me aos meandros duma juventude conturbada, traçada no país de origem, quando o país de exílio ainda estava muito longe do seu horizonte de eventos ou local de não-retorno. Convoca os sobreviventes do antigo círculo estudantil dos Bizantinos e retrata-os com a mestria que lhe conhecemos. Fá-lo nas páginas iluminadas dum romance de cariz documental e de reflexão autobiográfica, que intitula Les désorientés (2012). As personalidades históricas com direito a registo destacado nos manuais da especialidade são abandonadas, substituídas por personagens romanescas modeladas numa realidade contemporânea, que os mass media costumam visitar com uma frequência inquietante e banalizadora. Os olhos seguem as imagens, os ouvidos escutam as palavras, os sentidos adormecem com o déjà vu mil vezes repetido e desligam-se das notícias que prosseguem a sua caminhada inglória nos aparelhos de transmitir à distância as desgraças dos outros, heróis anónimos duma epopeia atual, pautada por muitas guerras sem vencedores nem vencidos.
A ação decorre alternadamente em dois tempos diferentes, o que se inicia em 1971 e se dirige, com o fluir da pena, até ao que termina em 2001. De permeio fica a Guerra Civil Libanesa (1975-1990), conflito sangrento que os separou a todos enquanto jovens e reuniu os sobreviventes depois de adultos. Reencontro que corresponderá, também, a uma última separação, a uma derradeira dispersão. Um drama de vida e morte documentado ao pormenor no carnet de notas do relator-protagonista, dezasseis dias precisos, datados criteriosamente de 20 de abril a 5 de maio desse ano inaugural do terceiro milénio. A cidade anfitriã dos encontros-desencontros mantém-se incógnita ao longo de todo o processo narrativo, envolvida num discreto secretismo que a leitura atenta dos testemunhos documentados ajudam a desvendar. Equacionadas as pistas, chegamos com alguma certeza a Beirute, a pérola do oriente, lugar-comum caído em desuso depois das desavenças bélicas causadas pelos conflitos políticos e acordos firmados após o termo da administração otomana na região, agudizados por rivalidades ancestrais alimentadas pelos sequazes dos profetas do deus único revelado em três livros sagrados. Ecos distantes que a memória coletiva dos povos teima em propagar.
Os atores dos factos contados simbolizam essa imensa manta de retalhos em que o Levante mediterrânico se tornou. Seguidores das leis ditadas por judeus, cristãos e muçulmanos. Exilados, desterrados, resistentes. Milicianos de muitas convicções pessoais inconciliáveis entre si. Fiéis ou opositores do regime do momento. Rendidos ao bem-estar do mundo exterior. Estrangeiros na sua terra e nas alheias. Vencidos pelos contextos adversos criados pela vontade caótica dos homens. Culpados e sem direito a desculpas esfarrapadas, gastas todas elas à força de serem repisadas sem descanso de geração em geração. Humilhados, apoucados, desorientados. O confronto da obra completa de Amin Maalouf ajuda-nos a compreender as mensagens contidas neste texto a que os editores portugueses ainda não concederam uma tradução há muito merecida. As guerras santas só conduzem a guerras e mais guerras. A solução está no debate de ideias, no diálogo entre culturas, na aceitação do diferente. O retorno às origens ajudará a anular as identidades assassinas que andam por aí à solta e a dar ordem neste mundo sem regras em que vivemos. As palavras estão ditas, escritas, reveladas. Os atos só esperam o momento exato de serem concretizados.
Dos livros que referes de Amin Malouf só li "Os jardins de luz", onde Mani (tradução portuguesa), o menino de Babel, é o herói que consegue reunir três religiões numa só. O maniqueísmo acabaria por conduzi-lo à morte, às mãos dos que têm o poder de impor as suas ideias aos povos... O livro seduziu-me pela espantosa magia que o autor semeia na narrativa e pelo conhecimento intrínseco da natureza humana.
ResponderEliminarCom este excelente texto que salienta com mestria a obra de Malouf, sinto a vontade de continuar a explorar os seus livros para melhor interiorizar a sua defesa do diálogo entre culturas e respeito pelo diferente, ideias que me cativam de raiz.
Obrigada, Prof., por esta magnífica sugestão!
Os meus romances preferidos de Amin Maalouf continuam a ser os referidos dum modo indireto, o «Léon l'Africain» (1986) e o «Samarcando» (1988) [biografia de Omar Khayyam]. Para além, evidentemente, de «Les Croisades vues par les Arabes» (1983), um ensaio que acabei por ler um pouco mais tarde. De resto, toda a obra merece uma visita especial e demorada...
EliminarConheço o autor, apesar de não ter ainda lido nada dele. Gostei e achei muito interessante a sua reflexão sobre esta obra. Gosto da sensação de saber que ainda existem vários e bons escritores para apreciar...
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