«No princípio era a música. Tenho a ideia de que o início das coisas é a beleza absoluta. E aí era o instrumento da beleza absoluta. A música é a arte evanescente, a que está no cimo da pirâmide»
No princípio era o Caos. Depois Gea entrou em cena e fez o resto. Assim concebia Hesíodo o nascimento ordenado de tudo aquilo que existe a que dá o nome de Cosmos. Fê-lo em grego arcaico, na Teogonia (750-650 AEC), provavelmente influenciado pela tradição multissecular de fenícios, babilónios, hurritas e hititas, habituados a viajar pelo insondável à procura da harmonia.
Para os hebreus, herdeiros da cultura dos povos mesopotâmicos, no princípio era o vazio. Depois Yahvé acordou do seu marasmo intem-poral e iniciou a tarefa de criar o mundo em seis dias, reservando o sétimo para um descanso merecido. Tudo isto aparece registado no Génesis (900-800 AEC), o livro bíblico das origens, seguido pela convicção monoteísta de judeus, cristãos e muçulmanos.
As mais antigas cosmogonias devem-se aos sumérios, os inven-tores da escrita, história e civilização. Para eles, no princípio havia o mar primordial que produziu a montanha cósmica, composta pelo céu e pela terra. Da união destes dois, nasceria o nosso mundo. Assim se diz nas lendas épicas de Gilgamesh (2330-2200 AEC), o rei de Uruk que queria conhecer os mistérios da morte.
Lídia Jorge pega nestas visões milenares das origens do espaço e do tempo que nos envolve - ou faz tábua rasa de todas elas - e afirma-nos que no princípio havia um órgão, com quatro mil tubos de metal e quatro fileiras de teclas, com que acabou com a monotonia abissal em que o vazio vivia, por não possuir coisa nenhuma dentro de si. Assim inicia o conto a que chamou O Organista (2014).
A fábula da criação continua. Depois do vazio e do órgão, vieram o homem, a mulher, o canto e a música. Em sétimo lugar surgiu o Criador, o pai do nada e do tudo. O primeiro elemento, bem vistas as coisas. Atraído pelo som, o senhor da invenção e da revelação apoderou-se do instrumento e compôs a partitura de tudo quanto existe, tal qual nós o conhecemos nos nossos dias.
«Quando os deuses ainda eram homens» (Atramhasis, 1800 AEC), reservaram aos mortais o trabalho, separando-os assim do destino dos imortais. O organista da fábula age doutro modo. Imita a melodia celestial ideada pelos homens e põe-se a escutar Tocata e Fuga à luz das estrelas, em louvor da União do sublime universal. O toque musical que faz a diferença e dá sentido à criação.
E foi ao som de Toccata e Fuga que li este texto, envolvendo-o na música que dá sentido à vida dos seres. As diversas fábulas sobre a criação do mundo são muito sugestivas, desde as mitológicos às místicas, terminando nesta criativa origem musical de Lídia Jorge. Se aos homens foi deixado o trabalho, é uma sorte que haja quem se dedique a suavizar-nos os dias, seja qual a forma que a música reveste. A Lídia Jorge a surpreender-nos sempre em cada passo, com a sua escrita inventiva e recheada de poesia musical...
ResponderEliminarObrigada, Prof., por esta recensão, também ela com a sua própria musicalidade.