16 de novembro de 2014

Uma laranja no fundo do cesto

Vicent Van Gogh, Cesto com seis laranjas (1888)























FALEMOS DE LARANJAS...

Às vezes pergunto-me se a primeira culpa do desastre a que este planeta chegou não terá sido nossa, disse, Nossa, de quem, minha, sua, perguntou Tertuliano Máximo Afonso, fazendo-se interessado, mas confiando que a conversa, mesmo com um início tão afastado das suas preocupações, acabasse por levá-los ao âmago do caso, Imagine um cesto de laranjas, disse o outro, imagine que uma delas, lá no fundo, começa a apodrecer, imagine que, uma após outra, vão todas apodrecendo, quem é que poderá, nessa altura, pergunto eu, dizer onde a podridão principiou, Essas laranjas a que está a referir-se são países, ou são pessoas, quis saber Tertuliano Máximo Afonso, Dentro de um país, são as pessoas, no mundo são os países, e como não há países sem pessoas, por elas é que o apodrecimento começa, inevitavelmente, E por que teríamos tido de ser nós, eu, você, os culpados, Alguém foi, Observo-lhe que não está a tomar em consideração o fator sociedade, A sociedade, meu querido amigo, tal como a humanidade, é uma abstração, Como a matemática, Muito mais do que a matemática, ao pé delas a matemática é tão concreta como a madeira desta mesa.

José Saramago, O homem duplicado (2002)

4 comentários:

  1. Um dos romances de Saramago cujo desenvolvimento do enredo, que revestiu uma ideia já conhecida, me deixou insatisfeita, o mesmo que me tinha acontecido com a Jangada de Pedra. Mas Saramago sempre semeou lições nos seus livros para nos fazer refletir sobre o mundo em que vivemos e a nossa quota de responsabilidade sobre o estado das coisas.... Há que retirar sempre a laranja podre no fundo do cesto se não queremos acabar podres também! Uma metáfora escrita com a singeleza própria de Saramago, acessível a todos quantos se interessam por uma sociedade mais equilibrada e justa.

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    1. Curiosamente dois dos textos que mais me seduziram em José Saramago, depois do «Memorial do convento» e do «Ano da morte de Ricardo Reis».Trabalhei-os a todos e agora com alguma insistência «O homem duplicado», um livro particularmente inquietante e com muitas perguntas à espera de resposta...

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  2. Prof., sou uma leiga na matéria, pelo que reajo emocionalmente... Para mim, as obras maiores de Saramago são "Memorial do convento", "O ano da morte de Ricardo Reis", "História do cerco de Lisboa", "O evangelho segundo Cristo", "Manual de pintura e de caligrafia", "Ensaio sobre a cegueira", "Ensaio sobre a lucidez"... Há sempre muitas perguntas por responder nos seus livros, mas estes ensinaram-me mais. Os desassossegos enfrento-os no dia a dia, pelo que prefiro os livros que me desafiam fortemente.

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  3. Em literatura somos todos mais ou menos leigos. Gostamos ou não gostamos em função do nosso mundo de referências. Em Saramago, a gestão das subjetividades torna-se mais difícil, sobretudo se entrarmos na parte mais intimista da sua escrita. As perguntas são mais intensas e as respostas mais fugidias. «O homem duplicado» prima por uma sublimação da ironia, sublinhada pelo próprio autor nas linhas de reflexão pessoal que lhe dedica. O escuro insistente dado aos textos do ciclo da pedra esbate-se e o claro dos do ciclo da estátua reaparecem. O cinzento é atenuado por momentos e a luz volta a brilhar no fundo do túnel. Os desafios são então encarados com um sorriso rasgado a amenizar QB os nossos desassossegos quotidianos.

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