«Johann Friedrich Struensee utsågs kungliga läkaren den danske kungen Christian VII den 5 april 1768, fyra år senare avrättades.»
Per Olov Enquist, Livläkarens besök (1999)
Todas as viagens são úteis para a aquisição de novas aprendiza-gens e experiências. Algumas delas conseguem mesmo mudar de modo radical pontos de vista pessoais até então tidos como definitivos. Uma passagem rápida por Copenhaga permitiu-me entrar em contacto com uma realidade escandinava que os roteiros turísticos geralmente ignoram ou a que imprimem uma ênfase muito reduzida. Convidam-nos a visitar castelos e palácios, a passear pelos parques e jardins que os enquadram, a fotografar os recantos mais aprazíveis que os alojam, mas omitem parte dos dramas que os seus proprietários aí vivenciaram. Acedi a alguns destes eventos pretéritos com a ajuda de Per Olov Enquist e d’ A visita do médico real (1999), através da escrita mágica dum autor sueco e dum romance histórico de enfoque dinamarquês, centrado na deslocação profissional do alemão Johann Friedrich Struensee à corte de Cristiano VII de Oldenborg e de Caroline Mathilde de Hanôver entre 1768 e 1772. Pequeno episódio aparentemente inócuo do Almanach de Gotha, que a Europa setecentista das monarquias absolutas do Ancien Régime comentou copiosamente em vários idiomas e depois remeteu para a órbita confortável dum esquecimento previsível.
Encarado desta forma simplista, o leitmotiv romanesco referido até pareceria roçar os limites da banalidade, se o obscuro visitante real não tivesse vivido um escandaloso caso de amor com a rainha e não tivesse implementado os alicerces da revolução dinamarquesa em nome do rei. Tudo isto em quatro anos que os anais oficiais consagraram com a designação de Era Struensee. O resultado de tão insólita efeméride é conhecido. A princesa da Grã-Bretanha e Irlanda foi obrigada a divorciar-se do rei da Dinamarca e Noruega e foi deportada para o castelo de Celle na Baixa-Saxónia. O até então médico, conselheiro e ministro do gabinete real foi condenado à morte por decapitação seguido de esquartejamento, sentença proferida mais pela implementação do processo de reforma do país do que pelo adultério cometido com a soberana. O tribunal que o julgou cortou o mal pela raiz, separando-lhe do corpo a mão que assinara os 632 decretos iluministas e a cabeça que os havia concebido e posto em prática. Por vezes vem-nos à lembrança o eco perdido doutros sucessos históricos cuja crueldade chocaram de igual modo o velho continente. A execução dos Távora (1759) serve de exemplo perfeito num contexto estritamente nacional. As semelhanças sangrentas são claras, conquanto a ação de Sebastião José de Carvalho e Melo, o ministro plenipotenciário de D. José I, tenha sido feita em nome no despotismo esclarecido do monarca fidelíssimo e não contra a sua concretização entre nós.
A urdidura dos factos é traçada com frases curtas, incisivas, clínicas, com o recurso a uma linguagem crua, sem falsos pudores, num estilo que certas práticas literárias reprovam mas que a natureza da matéria relatada justifica. O romancista fá-lo através da revisitação documental de confissões, relatórios, despachos, dissertações, jornais, escritos, notas, diários, livros e memórias. A oscilação discursiva entre luz e trevas é constante. O jogo dicotómico entre sonho e pesadelo, prazer e dor, realidade e ilusão, paixão e ódio invade o mundo imagético dos atores que dão corpo ao drama, levado à cena no país do lendário Amled, o príncipe louco celebrizado por Shakespeare com o nome trágico de Hamlet, um e outro referidos várias vezes na efabulação, sempre em confronto direto com Cristiano VII, o rei louco que passara toda a vida a representar o papel da corte no teatro da corte. O sentido paradoxal da peça assenta na tentativa absurda de se instaurar o reino da razão num reino entregue a um rei destituído de razão. A corte transforma-se num grande manicómio em que Struensee, o reformador idealista derrotado, é substituído nos labirintos do poder por Guldberg, o conspirador intriguista vencedor. Dois pequenos arbustos insignificantes entre árvores grandes e arrogantes. A aristocracia todo-poderosa podia voltar a respirar sossegada. A moral e os bons costumes tinham sido restaurados. O direito divino de governar os povos restituído às mãos do seu legítimo proprietário, i.e., dos seus leais colaboradores.
O romance mais conhecido do Prémio Nórdico da Academia Sueca começa com uma frase lapidar que sintetiza toda a fábula: «Johann Friedrich Struensee foi nomeado médico real do rei dinamarquês Christian VII no dia 5 de abril de 1768; quatro anos mais tarde foi executado». Felizmente para todos nós que o engenho e arte do escritor não se ficou por aí e nos introduziu nesse escasso período de tempo em que o livre-pensamento deu os primeiros passos decisivos nos palcos europeus e começou a mudar irreversivel-mente o destino dos seus cidadãos. Os filósofos da revolução perderam a batalha dinamarquesa no reinado de Cristiano VII mas ganharam a guerra francesa no reinado de Luís XVI. E assim se faz a história, e assim se contam histórias...
NOTA
Texto publicado há dois anos e meio no Pátio de Letras no regresso duma viagem rápida à Dinamarca. Reponho-a agora, no momento em que uma outra viagem nessa mesma rota corre o risco de ser inviabilizada por uma greve natalícia da TAP. As boas festas especiais que os envolvidos na transportadora aérea portuguesa dedicam aos seus clientes para celebrarem em separado a época por excelência no ano dedicada à família. Ditos e reditos os factos fiquem os livros lidos e relidos.