«Il Danubio (...) è il fiume di Vienna, di Bratislava, di Budapest, di Belgrado, della Dacia, il nastro che attraversa e cinge, come l'Oceano cingeva il mondo greco, l'Austria absburgica, della quale il mito e l'ideologia hanno fatto il simbolo di una koiné plurima e sovranazionale... Il Danubio è la Mitteleuropa tedesca-magiara-slava-romanza-ebraica, polemicamente contrapposta al Reich germanico.»
Claudio Magris, Danubio (1986)
Há livros que nos chegam às mãos fruto do mais puro acaso. Depois, apercebemo-nos tratar-se de obras de referência privilegiada dos respetivos autores. Detentores dos mais prestigiados galardões internacionais e com traduções efetuadas à escala planetária. Chamo a colação neste momento Claudio Magris e o Danúbio (1986). O texto foi recentemente reeditado entre nós. Quando estava a chegar à reta final da sua leitura de meses, foi anunciado ter o seu arquiteto vencido o primeiro Prémio Europeu Helena Vaz da Silva, instituído pela Europa Nostra, em parceria com o Centro Nacional de Cultura e o Clube Português de Imprensa, pelo seu contributo para a divulgação do património cultural. Felizes encontros estes que nos são proporcionados pela slot-machine da literatura.
Pierre-Daniel Huet refere, no Traité de l’origine des romans (1669), ser essa forma narrativa constituída por um conjunto de histórias de aventuras fingidas, escritas em prosa e com arte, para proveito e deleite dos leitores. Dificilmente encontramos essa súmula de caraterísticas canónicas aplicadas nas cinco centenas de páginas deste relato de viagens com nome de rio e tido como um dos grandes romances europeus atuais. A categorização problemática talvez se deva ao facto das questões de género se terem vindo a alterar a ritmo galopante até aos nossos dias. Por essa linha de pensamento, a noção estrita de epopeia, tão antiga como a própria inventiva humana, também escaparia, grosso modo, às normas rígidas decretadas pelas poéticas clássicas inspiradas em Aristóteles e Horácio.
Reanalizadas as coordenadas do problema à luz da obra aberta, equacionadas pelo olhar crítico de Umberto Eco, o mais conhecido texto do autor italiano até pode ser entendido como uma epopeia plural de muitos epos singulares, como um longo rosário de episódios histórico-lendários, protagonizados pelo segundo maior curso de água doce que atravessa o velho continente, como um romance de factos criados por ædos anónimos para dar vida aos heróis míticos recriados da Mitteleuropa. Biografia traçada a várias mãos para documentar as fases da vida do Danúbio, o rio que nasce negro e morre negro, o rio que por vezes é azul, o rio que atravessa uma dezena de países e alberga um número incerto de nações, povos e gentes. Relato épico-romanesco a lembrar-nos as aventuras peregrinas do Gilgamesh sumério pelas terras da Mesopotâmia e do Ulisses aqueu pelas águas do Mediterrâneo.
A viagem pelo Danúbio abaixo, desde as fontes incertas duma floresta germânica até ao delta romeno que conduz ao alto-mar, resulta também numa visita guiada às duas margens da Cortina de Ferro, aquela que ainda dividia a Europa em dois blocos rivais à data da conceção, escrita e publicação do texto. O alargamento da CEE aos novos países do sul estava então em curso. O processo de formação das novas fronteiras da periferia comunitária da futura UE, a prosseguir a ritmo rápido e eficaz. A premonição de novas eras surge no horizonte. O eco de impérios e reinos caídos, de países feitos, refeitos e desfeitos, de revoltas, revoluções e guerras do passado a ecoar no presente da leitura que já foi o futuro da escrita. Revoltas, revoluções, guerras, batalhas, invasões, cercos, conquistas, combates. Eis as coordenadas da história verdadeira que condicionam a feitura dos livros de histórias fingidas.
A verdade da epopeia em prosa do destino europeu mantém-se atual. O território banhado por um rio com duas fontes incertas, alimentado por muitos afluentes rivais, disperso numa foz repartida por três braços autómanos, persiste em ser o coração da civilização ocidental greco-latina e judaico-cristã. Mosaico de fadários individuais multisseculares a sonhar com a construção de impérios planetários eternos. Goteiras, regatos, mananciais, correntes, oceanos. Uma cultura de culturas que pode gerar a unidade na diversidade ou conduzir ao abismo que atrai o abismo. Vox populi, vox dei. O tudo ou o nada. O percurso acidentado da tal fita de bronze que corre tisnada e brilhante a simbolizar o trajeto dos argonautas ancestrais aos confins das terras conhecidas, para resgatar o Velocino de Ouro e repor a licitude da sua posse. Expedição dum punhado de navegantes em busca dum ideal comum. Teatro de encontros/confrontos representados no palco do grande teatro do mundo. Assim foi nos tempos lendários de ficção heroica assim o seja também nos tempos históricos de feição humana.
NOTA
Uma sugestão oportuna de leitura do Danúbio de Magris aqui neste espaço levou-me a repor um texto composto há quase dois anos no Pátio de Letras, até porque o tempo de férias que ainda anda no ar é particularmente propício às viagens pelos espaços que dão sentidos acrescidos à vida.