25 de fevereiro de 2016

James Joyce, a busca de identidade do jovem artista

«Once upon a time and a very good time it was there was a moocow coming down along the road and this moocow that was coming down along the road met a nicens little boy named baby tuckoo...»
James Joyce, A Portrait of the Artist as a Young Man (1916)
livros que antes de serem lidos ocupam um lugar privilegiado no nosso universo de referências bibliográficas. Vêm precedidos pelo carisma granjeado pelo autor ao longo dos tempos e pelos juízos de valor dos críticos de serviço. Aos simples mortais amantes da literatura, a tarefa da descoberta pessoal desses relatos compostos com engenho e arte torna-se particularmente difícil. E como de obras-últimas não rezam as sebentas escolares, toda a nossa atenção acaba por se centrar nas obras-primas impostas ex cathedra pelas diretivas oficiais do poder instituído. Tenho uma certa aversão à canonização incondicional de manual académico ou de contracapa de reedição especial. Encaro esse tipo de sacralização a contragosto. Pergunto-me onde fica afinal o livre-arbítrio de decidir sem a pressão exercida pela predestinação dogmática da intelligentzia dissemi-nadora de cultura à escala planetária.

Levei alguns anos a penetrar nos meandros diegéticos criados por James Joyce. Tive alguma dificuldade em percorrer os trilhos traçados no território por um romancista que estava condenado a demonstrar a sua genialidade inigualável em cada título publicado. Preferi viajar pelas nações, províncias e localidades dos restantes criadores a quem é consentido pisar o mesmo chão que eu piso sem ter necessidade de me pôr em pontas de pés ou dobrar-me de joelhos perante tanta genialidade. Alguém a quem omito o nome por pudor afirmou num ensaio necessariamente brilhante que só os estúpidos é que tinham dificuldade em entender a tessitura narrativa do Ulisses (1922). Achei a tirada impressionista de mau gosto e não me deixei impressionar com a provocação. Contive por algum tempo a curiosidade de seguir as errâncias de dezasseis horas de Leopoldo Bloom pelas dezanove ruas da cidade de Dublim, nesse dia 16 de junho de 1904, depois transformado nas festividades do Bloomsday. Uma viagem oportuna à Irlanda e um conhecimento mais consistente da Odisseia de Homero levou-me a entrar, finalmente, na intimidade do protagonista dum dos tais romances por excelência do século xx. A minha peregrinação pelos locais destacados na ficção ajudaram-me a compreender melhor alguns dos sentidos escondidos na escrita.

Acabo de encetar a minha segunda incursão nos domínios do mais consagrado inventor de histórias imaginadas com base em histórias acontecidas. Fi-lo pela mão de Stephen Dedalus, protagonista do Retrato do artista quando jovem (1916). Dizem os especialistas tratar-se dum verdadeiro autorretrato da infância, adolescência e juventude do autor. Relato pormenorizado dos mais significativos momentos existenciais do retratado e da sua passagem sucessiva pelo Clongowes Woods College de Kildare e pelos Irish Christian Brothers, Belvedere College e University College de Dublin. Romance de aprendizagem dum indivíduo que nunca se cansa de procurar a sua identidade de ser humano nos labirintos matriciais da cultura judaico-cristã de desenho católico-jesuítico. Percurso de formação feito, também, na intimidade familiar marcada por uma progressiva decadência económica a roçar a pobreza e no ambiente citadino povoado de tentações pecaminosas oferecidas a cada esquina. A procura da verdade leva-o, inexoravelmente, a uma rotura completa com a Igreja e à descoberta salvadora duma via artística alternativa. É assim que o vamos encontrar nos quatro capítulos iniciais da epopeia irlandesa dos nossos dias feita por Joyce à medida de Homero. O encontro do jovem Telémaco com o veterano Ulisses estava assegurada. Altura também de passar o testemunho duma personagem para a outra, dos verdes anos explanados num relato para os tempos de maturidade convocados num outro. E assim o processo de formação dum alter ego literário tomou forma e se transformou num modelo de referência obrigatória na república das letras.

Lidos os livros e superados os obstáculos de percurso, posso afirmar que o balanço resulta positivo. Estou também apto para declarar que a obra máxima da modernidade literária europeia não é a obra da minha vida. Mas, mesmo assim, teve o condão de pintar a minha existência com cores, matizes e tonalidades mais claras. Deu asas à minha imaginação. Permitiu-me voar mais alto. Como Ícaro e Dédalo dos mitos gregos ao libertarem-se do Labirinto de Creta. Ajudou-me a transformar o cinzento-abissal em azul-celestial e a preparar a mente para habilidades desconhecidas. Tal como regista Ovídio nas Metamorfoses e Joyce repete no Retrato. Epígrafe inicial prestimosa de amigo e aviso precioso de navegante. E assim se enriquecem os horizontes estéticos com que o mundo se pode vestir, e a prosa se faz poesia e a arte se faz caminho.

2 comentários:

  1. Divinal Artur!
    Quanto a mim, singela leitora, aguardo oportunidade para adquirir e mergulhar em "Ulisses", de James, James Joyce.

    ResponderEliminar
  2. Magnífico texto, de quem sabe o que diz e não hesita em proferir as suas opiniões e preferências literárias. Li "Retrato do artista quando jovem" e recordo-me de ter admirado a personalidade vincada do personagem. Até hoje, infelizmente, não explorei a genialidade do autor...

    ResponderEliminar