28 de junho de 2017

Crónicas da aldeia e cenas da vida do Porto de Júlio Dinis

INCIPITS
José das Dornas era um lavrador abastado, sadio, e de uma tão feliz disposição de génio, que tudo levava a rir; mas desse rir natural, sincero, e despreocupado que lhe fazia bem, e não do rir dos Demócritos de todos os tempos — rir cético, forçado, desconsolador, que é mil vezes pior do que o chorar.
As pupilas do senhor reitor (1866 e 1867)
Entre os súbditos da rainha Vitória, residentes no Porto, ao começar a segunda metade do século dezanove, nenhum havia mais benquisto e mais obsequiado, e poucos se apontavam como mais fleumáticos e genuinamente ingleses, do que Mr. Richard Whitestone.
Uma família inglesa (1867 e 1868)
Ao cair de uma tarde de dezembro, de sincero e genuíno dezembro, chuvoso, frio, açoutado do sul e sem contrafeitos sorrisos de primavera, subiam dois viandantes a encosta de um monte por a estreita e sinuosa vereda que pretensiosamente gozava das honras de estrada, à falta de competidora, em que melhor coubessem.
A morgadinha dos canaviais (1868)
A tradição popular em Portugal, nos assuntos de história pátria, não se remonta além do período da dominação árabe nas Espanhas. [...] Esta mesma noção histórica do povo é a que dá lugar à outro frequente facto. Quando, no centro de qualquer aldeia, se eleva um palácio, um solar de família, distinto dos edifícios comuns por uma qualquer particularidade arquitetónica mais saliente, ouvireis no sítio designá-lo por nome de Casa Mourisca, e, se não se guarda aí memória da sua fundação, a crónica lhe assinalará infalivelmente, como data, a lendária e misteriosa época dos Mouros.
Os fidalgos da casa mourisca (1871)
Diz-me uma memória antiga ter sido por volta dos meus dez anos de existência pacata numa pequena cidade estremenha que li pela primeira vez, de fio a pavio, uma obra completa de ficção. Terei sido influenciado pelo visionamento duma versão cinematográfica homónima, transmitida pela RTP, muito provavelmente na rubrica 7.ª Arte, que ia para o ar todas as noites de terça-feira, apresentada pelo cineasta Fernando Garcia. A história contada a preto-e-branco pelas imagens em movimento do celuloide foi confrontada com o cor-de-rosa da história desenhada com letras de molde nas páginas do romance. Depois de me ter deliciado a ouvir cantar as canções do filme realizado por Leitão de Barros em 1935, passei a interpretá-las também eu na presença dos versos inseridos por Júlio Dinis n'As pupilas do senhor reitor, divulgados em folhetim no Jornal do Porto em 1866 e lançados em livro em 1867. Ainda hoje os sei trautear sem grande esforço de execução lírica das coplas, xácaras, quadras e cantigas, musicadas todas elas ao gosto popular.

A lembrança longínqua que guardo desse encontro permanece muito viva nos faits divers de recorte literário ocorridos num tempo declaradamente pretérito, os tais que têm pautado de modo persistente a minha incursão de décadas pelos universos criativos que lhe dão forma. Voltei ao seu convívio no momento em que se celebram os 150 anos da sua publicação, com toda a discrição envergonhada a que o nosso meio cultural nos habituou. Aproveitei a boleia e pus-me a reler o painel completo pintado à pena por Joaquim Guilherme Gomes Coelho (1839-1871), o médico que enquanto escritor ficou conhecido pelo pseudónimo de Júlio Dinis. Retirei os quatro volumes da estante e entrei na sua intimidade com o mesmo empenho com que o fizera nos meus tempos de menino e moço. Edições antigas que nunca quis substituir, dadas à estampa pela Livraria Civilização do Porto, pela fabulosa quantia de 15$00 em formato cartonado. Encontrei-as com a natural patine que a sua vetusta idade lhes foi impiedosamente outorgando.

Parece-me desnecessário trazer para aqui os argumentos de cada um dos títulos que compõem o corpus romanesco visitado. O melhor é mesmo arregaçar as mangas, pôr as mãos à obra e ler os originais em modo impresso ou digitalizado. Dizem os entendidos da matéria tratar-se de textos que fizeram a passagem das estéticas românticas para as realistas, incorporando-os na categoria genérica dos romances de consciência e de caráter, decalcadas no modelo oitocentista no recorte inglês de George Eliot, Thakeray, Dickens e Jane Austen ou no francês de Balzac. Assim será, mas pouco importa para o caso. A entidade criadora limitou-se a integrá-los em duas categorias registadas no campo dos subtítulos: a «Crónica da Aldeia» (Pupilas, Morgadinha e Fidalgos) e «Cenas da vida do Porto» (Família). Nada mais. Um naturalismo rústico e urbano a contar episódios povoados por heróis-heroínas coetâneos da época em que foram idealizados e tanto agradaram ao público a que se destinavam. Paradigmáticos na sua função lúdica e pedagógica de exemplaridade formativa.

Os excessos da novela passional de Camilo Castelo Branco são ignorados pela estrutura sentimental preconizada pelo jovem romancista, que o substitui na preferência dos leitores da geração que o viu nascer e morrer. Apresenta-nos um universo de seres que desprezam a maldade do mundo e se convertem ao lado positivo da vida. Os protagonistas casam-se sempre no final do livro, sem terem de passar pelo crivo apertado dos triângulos amorosos e paixões cruzadas, pelos efeitos devastadores da tísica e a companhia indesejada de corujas e ciprestes, pelo ambiente lúgubre dos cemitérios visitados à meia-noite e pelos esqueletos abraçados até à eternidade num túmulo conjugal do além. Os lances macabros são substituídos por um ambiente de conto infantil sem fadas madrinhas ou almas do outro mundo. Há nas Pupilas uma madrasta má que se redime antes de dar o último suspiro. Há também na Família uma gata borralhenta que é levada ao altar por um quase-príncipe, depois dum lenço perdido num baile ter facilitado o reconhecimento e o tal happy-end exigido nos relatos tradicionais de transmissão oral. Simples, eficiente e a dispensar mais palavras para explicar o êxito do modelo, numa altura em que a Questão Coimbrã do Bom Senso e Bom Gosto (1865) daria lugar às Conferências Democráticas do Casino Lisbonense (1871). O caminho para as sucessivas Modernidades dos séculos XIX e XX estava definitivamente aberto.

24 de junho de 2017

O espião moscovita disfarçado de garrafa de gin


INTERVALO

Sobe ordenou o senador Spiralgold ao seu piloto privativo.
O helicóptero zumbiu e tomou altura, oscilando levemente.
Acelera! disse apressado o senador para o piloto atento.
O piloto carregou no botão. O fundo abriu-se e o senador Spiralgold esbor-rachou-se no solo, com eficácia.
Coisas que acontecem comentou para o piloto o espião moscovita dis-farçado de garrafa de gin.
Mário-Henrique Leiria, Contos do gin-tonic (1973)
Obs.:
No primeiro sábado do verão, que dizem ser o Dia Nacional do Gin Tónico...

21 de junho de 2017

Verões de festa e alegria

ESTATE

Giuseppe Arcimboldo

[Musée du Louvre - Paris - 1573]

O dia mais longo depois da noite mais curta

O verão é a estação do ano por que todos ansiamos enquanto du-ram as restantes. Aos outonos da prosperidade e decadência, aos invernos do recolhimento e reflexão e às primaveras da pureza e re-novação, sucedem os estios da festa e alegria. É o triunfo do dia sobre a noite, da luz sobre as trevas, do cosmos sobre o caos.

Giuseppe Arcimboldo (1527-1583) representa-o como Vertumno. Atribui-lhe as feições joviais da divindade etrusca que promovia a mudança da vegetação e a maturação dos frutos. A alcachofra eleita como emblema simboliza a regeneração da vida e a ressu-rreição dos mortos, porque volta a florescer depois de queimada.

Nas guerras sem trégua de gato e rato, de alecrim e manjerona ou do ser e parecer, as estéticas maneiristas dizem-nos que no final da refrega nunca há vencedores nem vencidos absolutos. Equinócios e solstícios saem sempre empatados. As mesmas horas, os mesmos minutos, os mesmos segundos de claros-escuros anuais.

18 de junho de 2017

José Saramago e as desconcertantes errâncias de Caim pelo mundo

«A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele.»
José Saramago, Caim (2009)
Caim (2009) de José Saramago não é uma obra maior. Os tripulantes da barcarola voadora e da jangada de pedra, os levantados do chão e assediados do cerco de Lisboa, os sumidos no ano da morte aí estão a impedi-lo. Estará, talvez, ao nível dum Salomão, o tal elefante quinhentista em trânsito terrestre entre Lisboa e Viena de Áustria. Também não é, decididamente, uma obra menor. O estilo inconfundível do autor nunca o permitiria. Está lá todo. Cada vez mais pujante. Só que nos conta histórias muito antigas, sabidas e ressabidas, desgastadas pelo uso e abuso que têm sido alvo no decorrer dos últimos dois / três últimos milénios.

Polémicas à parte, o romance mais não faz do que revisitar o livro dos livros e tentar reduzir ao absurdo a lógica ancestral ali coligida, à luz dos conhecimentos atualmente postos à nossa disposição. A ideia dum deus cruel e vingativo, engendrado pelo imaginário coleti-vo dos inventores de mitos que conduziram ao monoteísmo, é dis-secada pela instância narrativa, como se tivesse sido criada pelas mentes sofisticadas dos nossos dias. O resultado afigura-se-nos um pouco frustrante.
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A gesta ficcionada de Caim quase se confunde com as fortunas e adversidades dos andarilhos marginais que a inventiva castelhana dos séculos dourados pôs à disposição de todos nós. Oriundo de uma linhagem caída na desgraça (Adão e Eva), este protótipo bíblico de pícaro malfadado desenvolve um processo de ciúmes pelo irmão mais novo (Abel) e mata-o. Marcado na testa com o estigma do Senhor, é obrigado a encetar uma ininterrupta peregrinação pelo mundo, o que lhe proporcionará uma longa e penosa aprendizagem das tragédias da vida, ou, se preferirmos, das intermitências da morte. Transformado por força de circunstâncias mal apuradas num viajante involuntário do tempo, de deslocar consigo o presente da sua existência, ora para a frente ora para trás, o ilustre proscrito é levado a testemunhar alguns dos episódios mais sangrentos do Génesis e do Êxodo, que nunca se coíbe de comentar e criticar.

Protegido uma ou outra vez com oportunos nomes de empréstimo (Abel e Noah) e entregue a providenciais atividades laborais de subsistência (agricultor, pisador de barro, porteiro, ajudante de alveitar, rastreador, cuidador de burros), dedica-se à ingrata tarefa de recolher a prova irrefutável da profunda maldade do senhor. Adão e Eva são expulsos do jardim do Éden só por terem querido saber distinguir o bem do mal, votando todos os descendentes ao anátema do pecado original. Caim tira a vida a Abel, mas em contrapartida dá um filho a Noah, engravidando-lhe a mulher Lilith. Consegue salvar a vida de Isaac, impedindo Abraão de o sacrificar ao altíssimo, mas não obtém o perdão do Senhor, também conhecido como Deus.

A imprudência divina de criar o homem e a mulher à sua imagem e semelhança terá sido o maior erro da sua eterna presença. Depois, intentou emendar essa distração, massacrando a torto e a direito culpados e inocentes, para grande espanto de Caim. Em desespero de causa, tenta afogar toda a população terrestre, incumbindo Noé de fundar uma nova era na história da humanidade e dos restantes seres viventes. Caim não permitirá que o erro se volte a repetir. Enfrenta o Senhor e derrota-o em todas as frentes, conseguindo o estatuto de herói que os anti-heróis pícaros clássicos nunca lograram obter. O exemplo do amo celestial tinha-lhe servido de suprema e eficientíssima lição. É a morte que dá verdadeiramente sentido à vida.

José Saramago terá cometido a ingenuidade de ler a Bíblia em sentido próprio, de a ter reduzido a um mero rosário de relatos fabulosos que o mais elementar bom senso remete para o universo dos sentidos figurados. A própria Igreja aconselha esta fuga em frente. Mas, ao fazê-lo, a versão do romancista acaba por ser tão válida como qualquer outra. A qualidade literária tem muito pouco a ver com o sagrado. A efabulação termina com a frase lapidar: A história acabou, não haverá nada mais que contar. Conhecendo o autor como conhecemos, duvidamos que essa decisão seja de fiar. Bem vistas as coisas, os leitores só têm a lucrar com uma tal eventualidade.

NOTA
No dia em que José Saramago cumpriu a sua peregrinação por esta vida, lembrei-me de trazer aqui o texto que compus há sete anos e picos sobre Caim e tornei público no Pátio de Letras, pretexto para reler o derradeiro romance que nos legou.

16 de junho de 2017

A aliança das rosas

ALIANÇA ANGLO-PORTUGUESA
[16 de junho de 1373]
Prato de porcelana da Vista Alegre comemorativo do 600.º aniversário

Ambas as coisas...

A Fábrica de Porcelana da Vista Alegre produziu em 1973 um prato comemorativo do 600.º aniversário da mais antiga aliança diplomáti-ca do mundo, assinada em 16 de junho de 1373, em Westminster, em nome de D. Fernando I de Portugal e de Eduardo III de Inglater-ra. Está decorado com as armas reais das casas de Borgonha e Plantageneta, e os atuais brasões da República Portuguesa e do Reino Unido, sobre fundo azul e ouro. Faz-se ainda acompanhar dum dístico elucidativo da efeméride e de duas rosas heráldicas identificativas dos dois soberanos, a branca do bisneto da Rainha Santa Isabel e a vermelha do avô da Rainha Filipa de Lencastre.

O tratado estabelecido pelas duas coroas frutificaria por séculos, para proveito mútuo das partes envolvidas. As rivalidades com Castela, pela soberania dos tronos peninsulares, ou com França, pela hegemonia dos impérios globais, levaria ao reforço desse acordo. Entre todos, destacam-se os tratados de Windsor (1386) e Methuen (1703). Pelo meio, ficaram os pactos acordados pelas casas de Bragança e Stuart, aquando da Guerra de Restauração (1640-1668). À luz das relações luso-britânicas, viver-se-á o Bloqueio Continental (1806-1814). À sua sombra, o Mapa Cor-de-Rosa desencadeará a humilhação portuguesa do Ultimato Inglês (1890).

Todas as rosas têm espinhos. As da paz e as da guerra. El-rei D. Fernando I, o Formoso ou o Inconstante, enquadra-se bem neste conceito. Tanto assinava tratados de amizade como os rasgava de seguida. Manteve a palavra com Inglaterra, quebrou-a com Castela. Esta caráter bipolar é confirmado na sentença que dá alma ao cor-po da divisa Cur non untrunque, pedida emprestada a Santo Agos-tinho (Confissões: xii, 32). «Por que não ambas as coisas?». Ser brando com uns e duro com outros. Estar bem com Deus e com o Diabo. Por um qualquer motivo, lembrei-me do Brexit. Sair da Euro-pa e ficar na Europa. Ubiquidade britânica que o tempo esclarecerá.

10 de junho de 2017

Falar a língua em que se mamou...

Samuel Usque
Consolação às tribulações de Israel
Ferrara, 1553


Prologo

Algũs  ſeñores  quiſerom dizer antes que
ſoubeſem  minha  razam, que fora milhor
auer cõpoſto  em  lingoa  caſtelhana, mas
eu  creo que niſſo nam errey, porque ſen-
do o  meu principal  yntento falar cõ Por
tugheſes e repreſentando a  memoria  de-
ſte  noſſ deſterro  buſcarlhe  per  muitos
meos  e  longo  rodeo,  algum  aliuio aos
trabalhos  que  nelle  paſſamos,  deſconue
niente  era  fugir da  lingua que mamey e
buſcar outra preſtada per a falar aos meus
naturais; E  dado  caſo  que  A  volta ou-
ue muitos do desterro de Caſtela,
e os meus paſſado a daly ajam
ſido, mais razaõ parece
que tenha agora co
nta com o pre-
ſente e
ma-
yor can-
tida-
de.

CONSOLACAM AS TRIBVLACOENS DE ISRAEL 
COMPOSTO POR SAMVEL VSQVE.

NOTA:
Assim se ortografava no tempo de Samuel Usque, assim se ortografava também no tempo de Luís de Camões, assim se demonstra deter cada tempo os seus usos de ortografar a língua que se mamou na infância...

7 de junho de 2017

João Aguiar, os comedores de pérolas e os apetites bizarros de Cleópatra

«Dez anos depois de 1999, não há-de sobrar um único vestígio por-tuguês em Macau.»
João Aguiar, Os comedores de pérolas (1992)
Grande parte dos textos que lemos durante o ano são-nos impostos pelo dever, pelos compromissos profissionais a que não podemos escapar. O prazer que poderíamos recolher desse exercício encontra-se, regra geral, afastado. Esperamos então, com incontida impaciência, a chegada das férias para, finalmente, nos dedicarmos à exploração dos segredos escondidos nas páginas dos livros de mero entretenimento que fomos arrastando das estantes das livrarias para as das nossas casas e que os fados nos impediram de desvendar no acto imediato em que os adquirimos.

Os comedores de pérolas (1992), de João Aguiar, encontra-se nessa situação ingrata das leituras adiadas, com a agravante do período de espera se ter prolongado por um espaço de tempo extraordinariamente dilatado de dezassete anos, medidos entre o inverno em que saiu a primeira edição e o verão que agora acaba de findar. Vá-se lá saber porquê. O acaso por vezes tem destes caprichos insondáveis. Os livros ficam adormecidos no meio de muitos outros à espera do momento mais oportuno de se abrirem para o mundo e de lhe revelarem a totalidade dos seus mistérios e potencialidades.

Concebido como um diário quase secreto, o romance funciona como uma aturada reflexão pessoal de Adriano Carreira, jornalista encartado e romancista premiado, de meia-idade, que uma depressão havia empurrado de Lisboa para Macau, nas vésperas da transferência de administração do território de Portugal para a China. O exotismo oriental e o momento histórico em que a ação decorre, bem como os conflitos amorosos vividos pelo protagonista, configuram um típico cenário de intriga policial, mantendo o leitor preso até ao final do relato, momento em que todos os enigmas se desvendam e garantem o sucesso narrativo a que todos os autores legitimamente aspiram.

Porventura, esta não será a melhor obra de João Aguiar. Nem sequer a mais conhecida ou citada. Antes dela já tinha composto outras que haviam despertado a atenção da crítica e do público em geral, o mesmo acontecendo com todas aquelas que publicou em datas posteriores. Possui, pelo menos, a virtualidade de nos pôr em contacto com uma realidade cultural bem diferente da nossa, que nunca chegámos a compreender, conquanto tivéssemos permanecido na Cidade do Santo Nome de Deus cerca de quatro séculos e meio. O diálogo entre as gentes dos dois extremos do continente eurasiático, o ocidental e o oriental, nunca se verificou de facto. Essa é uma das principais deceções do narrador, verdadeiro alter ego do próprio autor, também ele jornalista e romancista, profundamente interessado pela realidade do nosso país no mundo.

O fracasso da presença portuguesa em Macau é várias vezes explicado através da alegoria da pérola, aquela que Cleópatra dissolveu em vinagre, durante um banquete, só para mostrar a Marco António que era mais gastadora do que ele. Na opinião da instância narrativa, a cidade até podia ser uma pérola se nós nos tivéssemos esforçado por isso. Mas, tal como na anedota histórica, limitámo-nos a imitar a antiga rainha egípcia e convertemo-nos em meros comedores de pérolas.

Dando jus ao proverbial pessimismo nacional, Adriano Carreira afirma categoricamente, em 1992, que Dez anos depois de 1999, não há de sobrar um único vestígio português em Macau. Chegados que somos ao então longínquo ano de 2009, olhemos atentamente para a Cidade do Rio das Pérolas e contestemos o vaticínio formulado. Afinal, o diabo não é assim tão mau como o pintam. As ruínas de São Paulo e o edifício do Leal Senado permanecem estoicamente de pé, o idioma português teima em competir com o inglês de Hong-Kong e o chinês de Cantão e os casinos continuam a multiplicar-se como cogumelos em terreno pantanoso, para satisfação generalizada de gregos e troianos. A cultura das patacas, afinal, aí está a desafiar prodigiosamente a imaginação mais ousada.

NOTA
Foi com este texto que iniciei a minha colaboração de cinco anos no Pátio de Letras, só interrompida quando esse espaço foi obrigado a fechar portas e comecei a escrevinhar estas Histórias d'Arthur d'Algarbe. Trago-o agora com algumas pequenas pinceladas editoriais para este blogue quando se completam sete anos sobre a partida apressada de João Aguiar, um dos meus autores preferidos e que não teve a ventura de ser reconhecido até hoje como um dos nomes maiores da atual cultura literária portuguesa.  

1 de junho de 2017

A Casa das Bonecas

Casa di bambola della famiglia Bäumler di Norimberga (c. 1650-1700)[Spielzeugmuseum - Nürnberg, Deutschland]

BRINCAR ÀS CASINHAS...

Mas também eu tive um tempo de Casa das Bonecas. Chamávamos-lhe então brincar às casinhas. Não havia bonecas. Boneco era eu e a outra. Uma vizinha afoita que me pegava na mão e no mais que lhe pudesse dar. E tínhamos uma corte. Era a corte dos porcos. Acabada a escola, feitos os deveres, nós íamos brincar para o pátio da vizinha. Maridinho e mulher. Um casal perfeito. Fazia-se o jantarinho em pedaços de barro, com ervas e restos de chouriço cru. Fruta de escolha, guardada para os animais. E fazíamos filhos, com os porcos ali ao lado, vizinhos e camaradas. Só que os adereços dos nossos aposentozinhos eram quase sempre imaginados. Não havia cómodas, bibelots, tapetes. Tapete era uma velha saca de ráfia, que fora antes de adubo, e que chegada a hora passava a ser também lençol de cama. Recordo um alqueire que fazia as vezes de mesa de jantar. E tudo, tudo tão silencioso, para além do amistoso resfolegar dos porcos. A maior parte do tempo era passada na cama. Alguém berrava dentro da casa e nós bem quietinhos, mornos, colados um ao outro. Um cão ao longe ladrava, uma galinha espreitava de cabeça no ar e crista rubra como uma bandeira. Os dois, abraçadinhos, morríamos de medo de que o nosso casamento fosse um dia desfeito, descoberto. A dona de casa era uma velha de buço a quem eu ajudava a deitar a urina dos bacios nuns grandes potes de barro que havia junto do chiqueiro. A velha engraçava comigo, e a minha mulherzinha era a neta dela. Sabíamos os dois que estávamos guardados por aquela leoa gasta, toda vestida de preto, com o seu farto bigode e o seu trovão de voz que espantava os gatos. Que beijos e abraços, que lento esse despir que não dava pelo frio. E os dois, em movimentos mansos, procurávamos reproduzir a reprodução.
Tivemos muitos filhos de trapos.
E éramos felizes.
Armando Silva de Carvalho
[Óbidos, 28.03.1938 – Caldas da Rainha, 1.06.2017]
O Livro do Meio (2006: 51-52)
Romance epistolar composto com Maria Velho da Costa