José Saramago, Caim (2009)«A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele.»
O Caim (2009) de José Saramago não é uma obra maior. Os tripulantes da barcarola voadora e da jangada de pedra, os levantados do chão e assediados do cerco de Lisboa, os sumidos no ano da morte aí estão a impedi-lo. Estará, talvez, ao nível dum Salomão, o tal elefante quinhentista em trânsito terrestre entre Lisboa e Viena de Áustria. Também não é, decididamente, uma obra menor. O estilo inconfundível do autor nunca o permitiria. Está lá todo. Cada vez mais pujante. Só que nos conta histórias muito antigas, sabidas e ressabidas, desgastadas pelo uso e abuso que têm sido alvo no decorrer dos últimos dois / três últimos milénios.
Polémicas à parte, o romance mais não faz do que revisitar o livro dos livros e tentar reduzir ao absurdo a lógica ancestral ali coligida, à luz dos conhecimentos atualmente postos à nossa disposição. A ideia dum deus cruel e vingativo, engendrado pelo imaginário coleti-vo dos inventores de mitos que conduziram ao monoteísmo, é dis-secada pela instância narrativa, como se tivesse sido criada pelas mentes sofisticadas dos nossos dias. O resultado afigura-se-nos um pouco frustrante.
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A gesta ficcionada de Caim quase se confunde com as fortunas e adversidades dos andarilhos marginais que a inventiva castelhana dos séculos dourados pôs à disposição de todos nós. Oriundo de uma linhagem caída na desgraça (Adão e Eva), este protótipo bíblico de pícaro malfadado desenvolve um processo de ciúmes pelo irmão mais novo (Abel) e mata-o. Marcado na testa com o estigma do Senhor, é obrigado a encetar uma ininterrupta peregrinação pelo mundo, o que lhe proporcionará uma longa e penosa aprendizagem das tragédias da vida, ou, se preferirmos, das intermitências da morte. Transformado por força de circunstâncias mal apuradas num viajante involuntário do tempo, de deslocar consigo o presente da sua existência, ora para a frente ora para trás, o ilustre proscrito é levado a testemunhar alguns dos episódios mais sangrentos do Génesis e do Êxodo, que nunca se coíbe de comentar e criticar.
Protegido uma ou outra vez com oportunos nomes de empréstimo (Abel e Noah) e entregue a providenciais atividades laborais de subsistência (agricultor, pisador de barro, porteiro, ajudante de alveitar, rastreador, cuidador de burros), dedica-se à ingrata tarefa de recolher a prova irrefutável da profunda maldade do senhor. Adão e Eva são expulsos do jardim do Éden só por terem querido saber distinguir o bem do mal, votando todos os descendentes ao anátema do pecado original. Caim tira a vida a Abel, mas em contrapartida dá um filho a Noah, engravidando-lhe a mulher Lilith. Consegue salvar a vida de Isaac, impedindo Abraão de o sacrificar ao altíssimo, mas não obtém o perdão do Senhor, também conhecido como Deus.
A imprudência divina de criar o homem e a mulher à sua imagem e semelhança terá sido o maior erro da sua eterna presença. Depois, intentou emendar essa distração, massacrando a torto e a direito culpados e inocentes, para grande espanto de Caim. Em desespero de causa, tenta afogar toda a população terrestre, incumbindo Noé de fundar uma nova era na história da humanidade e dos restantes seres viventes. Caim não permitirá que o erro se volte a repetir. Enfrenta o Senhor e derrota-o em todas as frentes, conseguindo o estatuto de herói que os anti-heróis pícaros clássicos nunca lograram obter. O exemplo do amo celestial tinha-lhe servido de suprema e eficientíssima lição. É a morte que dá verdadeiramente sentido à vida.
José Saramago terá cometido a ingenuidade de ler a Bíblia em sentido próprio, de a ter reduzido a um mero rosário de relatos fabulosos que o mais elementar bom senso remete para o universo dos sentidos figurados. A própria Igreja aconselha esta fuga em frente. Mas, ao fazê-lo, a versão do romancista acaba por ser tão válida como qualquer outra. A qualidade literária tem muito pouco a ver com o sagrado. A efabulação termina com a frase lapidar: A história acabou, não haverá nada mais que contar. Conhecendo o autor como conhecemos, duvidamos que essa decisão seja de fiar. Bem vistas as coisas, os leitores só têm a lucrar com uma tal eventualidade.
NOTA
No dia em que José Saramago cumpriu a sua peregrinação por esta vida, lembrei-me de trazer aqui o texto que compus há sete anos e picos sobre Caim e tornei público no Pátio de Letras, pretexto para reler o derradeiro romance que nos legou.
Deste autor, apenas li um livro: Todos os nomes. Dia após dia cresce em mim a necessidade de ler outras obras de José Saramago.
ResponderEliminarNeste dia que se revelou mais negro do que apenas para recordar como a data em que o escritor partiu deste mundo, mais uma vez a grande literatura nos vem salvar da tristeza. Obrigada por nos trazer este precioso texto, Artur.
Tem razão, Ana. O dia nasceu negro por causas naturais agravadas pela intervenção desastrosa do homem. Publiquei este texto evocador do génio criador de José Saramago na data em que perfazem precisamente sete anos que nos deixou. Fi-lo antes de aceder às notícias que estão a marcar este domingo a todos os títulos infernal. Se o tivesse feito assim que me levantei teria, com certeza, abandonado a ideia de sobrepor as histórias imaginadas pela ficção às histórias concretizadas na realidade quotidiana. Valha-nos a consolação de ser através da literatura que as tristezas da vida podem ser parcelarmente mitigadas, sempre que abrimos um livro e nos pomos a visitar os universos alternativos ali desenhados.
EliminarMais um livro que li após seguindo as tuas fabulosas reflexões, Prof. Neste livro, Saramago deu-me mais uma vez o prazer de contactar a sua desassombrada forma de analisar o divino através da poderosa lucidez humana.
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