«Dez anos depois de 1999, não há-de sobrar um único vestígio por-tuguês em Macau.»
João Aguiar, Os comedores de pérolas (1992)
Grande parte dos textos que lemos durante o ano são-nos impostos pelo dever, pelos compromissos profissionais a que não podemos escapar. O prazer que poderíamos recolher desse exercício encontra-se, regra geral, afastado. Esperamos então, com incontida impaciência, a chegada das férias para, finalmente, nos dedicarmos à exploração dos segredos escondidos nas páginas dos livros de mero entretenimento que fomos arrastando das estantes das livrarias para as das nossas casas e que os fados nos impediram de desvendar no acto imediato em que os adquirimos.
Os comedores de pérolas (1992), de João Aguiar, encontra-se nessa situação ingrata das leituras adiadas, com a agravante do período de espera se ter prolongado por um espaço de tempo extraordinariamente dilatado de dezassete anos, medidos entre o inverno em que saiu a primeira edição e o verão que agora acaba de findar. Vá-se lá saber porquê. O acaso por vezes tem destes caprichos insondáveis. Os livros ficam adormecidos no meio de muitos outros à espera do momento mais oportuno de se abrirem para o mundo e de lhe revelarem a totalidade dos seus mistérios e potencialidades.
Concebido como um diário quase secreto, o romance funciona como uma aturada reflexão pessoal de Adriano Carreira, jornalista encartado e romancista premiado, de meia-idade, que uma depressão havia empurrado de Lisboa para Macau, nas vésperas da transferência de administração do território de Portugal para a China. O exotismo oriental e o momento histórico em que a ação decorre, bem como os conflitos amorosos vividos pelo protagonista, configuram um típico cenário de intriga policial, mantendo o leitor preso até ao final do relato, momento em que todos os enigmas se desvendam e garantem o sucesso narrativo a que todos os autores legitimamente aspiram.
Porventura, esta não será a melhor obra de João Aguiar. Nem sequer a mais conhecida ou citada. Antes dela já tinha composto outras que haviam despertado a atenção da crítica e do público em geral, o mesmo acontecendo com todas aquelas que publicou em datas posteriores. Possui, pelo menos, a virtualidade de nos pôr em contacto com uma realidade cultural bem diferente da nossa, que nunca chegámos a compreender, conquanto tivéssemos permanecido na Cidade do Santo Nome de Deus cerca de quatro séculos e meio. O diálogo entre as gentes dos dois extremos do continente eurasiático, o ocidental e o oriental, nunca se verificou de facto. Essa é uma das principais deceções do narrador, verdadeiro alter ego do próprio autor, também ele jornalista e romancista, profundamente interessado pela realidade do nosso país no mundo.
O fracasso da presença portuguesa em Macau é várias vezes explicado através da alegoria da pérola, aquela que Cleópatra dissolveu em vinagre, durante um banquete, só para mostrar a Marco António que era mais gastadora do que ele. Na opinião da instância narrativa, a cidade até podia ser uma pérola se nós nos tivéssemos esforçado por isso. Mas, tal como na anedota histórica, limitámo-nos a imitar a antiga rainha egípcia e convertemo-nos em meros comedores de pérolas.
Dando jus ao proverbial pessimismo nacional, Adriano Carreira afirma categoricamente, em 1992, que Dez anos depois de 1999, não há de sobrar um único vestígio português em Macau. Chegados que somos ao então longínquo ano de 2009, olhemos atentamente para a Cidade do Rio das Pérolas e contestemos o vaticínio formulado. Afinal, o diabo não é assim tão mau como o pintam. As ruínas de São Paulo e o edifício do Leal Senado permanecem estoicamente de pé, o idioma português teima em competir com o inglês de Hong-Kong e o chinês de Cantão e os casinos continuam a multiplicar-se como cogumelos em terreno pantanoso, para satisfação generalizada de gregos e troianos. A cultura das patacas, afinal, aí está a desafiar prodigiosamente a imaginação mais ousada.
NOTA
Foi com este texto que iniciei a minha colaboração de cinco anos no Pátio de Letras, só interrompida quando esse espaço foi obrigado a fechar portas e comecei a escrevinhar estas Histórias d'Arthur d'Algarbe. Trago-o agora com algumas pequenas pinceladas editoriais para este blogue quando se completam sete anos sobre a partida apressada de João Aguiar, um dos meus autores preferidos e que não teve a ventura de ser reconhecido até hoje como um dos nomes maiores da atual cultura literária portuguesa.
Um texto expressivo sobre um autor excecional. Dele li apenas três livros, dois sobre a realidade macaense, mas o prazer foi tão grande que ainda hoje se encontram na parte de frente nas estantes de escritores portugueses.
ResponderEliminarMuito interessante, o texto, o autor que conheço de nome, mas, que ainda não li e o tema sobre o qual o autor reflete. Ainda bem que o nosso pessimismo raramente se verifica.
ResponderEliminarExcelente livro, como todos os outros deste autor injustamente tratado pela crítica e pelo mainstream literário devido a sua discrição.
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