1 de junho de 2017

A Casa das Bonecas

Casa di bambola della famiglia Bäumler di Norimberga (c. 1650-1700)[Spielzeugmuseum - Nürnberg, Deutschland]

BRINCAR ÀS CASINHAS...

Mas também eu tive um tempo de Casa das Bonecas. Chamávamos-lhe então brincar às casinhas. Não havia bonecas. Boneco era eu e a outra. Uma vizinha afoita que me pegava na mão e no mais que lhe pudesse dar. E tínhamos uma corte. Era a corte dos porcos. Acabada a escola, feitos os deveres, nós íamos brincar para o pátio da vizinha. Maridinho e mulher. Um casal perfeito. Fazia-se o jantarinho em pedaços de barro, com ervas e restos de chouriço cru. Fruta de escolha, guardada para os animais. E fazíamos filhos, com os porcos ali ao lado, vizinhos e camaradas. Só que os adereços dos nossos aposentozinhos eram quase sempre imaginados. Não havia cómodas, bibelots, tapetes. Tapete era uma velha saca de ráfia, que fora antes de adubo, e que chegada a hora passava a ser também lençol de cama. Recordo um alqueire que fazia as vezes de mesa de jantar. E tudo, tudo tão silencioso, para além do amistoso resfolegar dos porcos. A maior parte do tempo era passada na cama. Alguém berrava dentro da casa e nós bem quietinhos, mornos, colados um ao outro. Um cão ao longe ladrava, uma galinha espreitava de cabeça no ar e crista rubra como uma bandeira. Os dois, abraçadinhos, morríamos de medo de que o nosso casamento fosse um dia desfeito, descoberto. A dona de casa era uma velha de buço a quem eu ajudava a deitar a urina dos bacios nuns grandes potes de barro que havia junto do chiqueiro. A velha engraçava comigo, e a minha mulherzinha era a neta dela. Sabíamos os dois que estávamos guardados por aquela leoa gasta, toda vestida de preto, com o seu farto bigode e o seu trovão de voz que espantava os gatos. Que beijos e abraços, que lento esse despir que não dava pelo frio. E os dois, em movimentos mansos, procurávamos reproduzir a reprodução.
Tivemos muitos filhos de trapos.
E éramos felizes.
Armando Silva de Carvalho
[Óbidos, 28.03.1938 – Caldas da Rainha, 1.06.2017]
O Livro do Meio (2006: 51-52)
Romance epistolar composto com Maria Velho da Costa

3 comentários:

  1. Que feliz ideia de comemorar o Dia da Criança (mais um na vida das crianças...) com este belo texto! Fez-me lembrar as minhas brincadeiras infantis, entre elas o brincar às casinhas também... Feliz idade, que tanto contribuiu para a pessoa adulta que sou hoje!

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  2. Um grande artífice de palavras desenhadas em prosa poética e em poesia integral...

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