10 de setembro de 2018

Philip Roth e as histórias de vida do escritor fantasma

«I turn sentences around. That’s my life. I write a sentence and then I turn it around. Then I look at it and I turn it around again. Then I have lunch. Then I come back in and write another sentence. Then I have tea and turn the new sentence around. Then I read the two sentences over and turn them both around. Then I lie down on my sofa and think. Then I get up and throw them out and start from the beginning. And if I knock off from this routine for as long as a day, I’m frantic with boredom and a sense of waste.» 
Philip Roth, The Ghost Writer (1979)
Há livros que falam de livros. Há outros livros que vão mais além e falam dos autores que escrevem livros. Contos, novelas, romances. Livros que falam das voltas que é preciso dar a uma frase para a juntar a outras frases identicamente martirizadas, palavra a palavra, até encontrarem a versão final. Aquelas que depois de terem sido marteladas incessantemente numa Olivetti serão entregues às rotativas das impressoras e confiadas ao público leitor. Philip Roth consegue tudo isto n'O escritor fantasma (1979), primeiro volume duma trilogia e epílogo protagonizada por Nathan Zuckerman, um jovem e auspicioso romancista em princípio de carreira, que nos proporciona um proveitoso encontro com a literatura e com os grandes livros que a compõem.

A badana de capa da edição que me serviu de abre-te, Sésamo! às histórias contidas no seu interior dá-nos logo um lamiré sobre a sua trama discursiva, tecida como se se tratasse do diário duma ilusão. Remete-nos, sem o explicitar, para a lei das três unidades dramáticas concebidas por Aristóteles na Poética. Tempo, espaço, ação. Tudo se passa numa única noite, na casa de campo de E. I. Lonoff, autor reputado do bildungsroman e figura de culto do protagonista-narrador da fábula, numa conversa sobre a literatura e a vida. Nesse encontro de homens das letras, o consagrado e o promissor, desenvolvem um diálogo que os levará, passo a passo, a revelarem as fronteiras entre a existência imaginária das personagens feitas de papel e tinta e a concreta vivida pelas pessoas de carne e osso.

A unidade e a diversidade da memória, traçadas pelo eu enunciador, cruzam-se na questão judaica, que atravessa o relato de ponta a ponta, sem pausas nem rebuços, distribuída de forma avassaladora pelas quatro partes dramáticas postas em cena. As dedicadas ao maestro ou anfitrião, a Nathan Dédalo ou convidado, à femme fatale ou discípula do mestre e à casada com Tolstoi ou anfitriã. As referências literárias são evidentes neste labirinto discursivo de ramificações hipertextuais, típico das narrativas que falam doutras narrativas. As gizadas pelo grande escritor, as vividas pelo aprendiz de escritor à imagem das descritas por James Joyce no Retrato do artista enquanto jovem, as imaginadas por Amy Bellette no papel duma Anne Frank sobrevivente do holocausto nazi e as de Hope Lonoff a abandonar o lar conjugal à semelhança do vulto maior das letras russas de todos os tempos.

Lidos os livros, os reais e os virtuais, pergunto-me quem será mesmo o escritor fantasma. O que se mantém por vontade própria nos bas-tidores do sucesso, o que procura a todo o custo o reconhecimento público à sombra duma celebridade consagrada, o que se esconde por detrás dessas figuras da ficção decalcadas duma realidade fac-tual concreta. Por alguma razão Nathan Zuckerman e Emanuel Isidore Lonoff podem ser entendidos como duas vertentes comple-mentares do alter ego multifacetado de Philip Roth, situadas nas duas fases do seu percurso fecundo pelos universos da escrita. O sujeito externo de enunciação romanesca a escolher um sujeito interno como verdadeiro transmissor duma autenticidade artística almejada. Um risco assumido por um contador genial de histórias verdadeiras como se fossem fingidas.

3 comentários:

  1. Verdadeiramente interessante. Gostei das referências à Poética de Aristóteles e a Retrato do Artista Enquanto Jovem de James Joyce.
    Um escritor que urge descobrir...

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  2. Também o descobri há pouquíssimo tempo. Às vezes é preciso morrer para se ser imortal...

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  3. Bela resenha, Prof., que me relembra a escrita muito criativa de Roth. Um livro que ainda nao li, pelo que agradeço a análise pedagógca!

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