15 de maio de 2020

A vaca espanhola, a ópera-bufa e a carta digital

     Clavier en pierre dans une rue de Bruxelles     

TUTA - TORTO - TORTELLINI - TUNHO
Se eu fosse francês e alguém me ouvisse quando rondava os meus três anos de idade diria que je parlais comme une vache espagnole. Como sou português de gema, limitavam-se a considerar que era muito espanhol a falar. Pobre Espanha com tais vizinhos dum lado e doutro da fronteira a testar as suas capacidades linguísticas. Foi com esta capacidade poliglota que batizei o meu irmão de Bé-Tó, de tal maneira que ainda hoje toda a gente o conhece como tal. Da mesma particularidade gozava a minha filha mais nova e goza agora também o meu neto, que, a uma distância de três décadas, me passaram a chamar Pai Tuta e Vô Tunho. Nem mais nem menos. O Artur anda um pouco escondido no todo obtido, mas deixa-se revelar nas sílabas iniciais dos dois petits noms infantis que me foram atribuídos e eu carrego com todo o prazer do mundo.

Quando os alunos ainda tinham alguma imaginação, apelidavam os professores com um ou outro epíteto mais ou menos contundente. A mim coube-me o de Torto. Nunca me senti minimamente melindrado com essa forma irreverente de me identificarem. Vi-a sempre como sinónimo de exigência pedagógica de exercer a docência. Deu-me até para alimentar a brincadeira e italianizá-lo para Arturo Tortellini, como nome artístico numa troupe residente de opera buffa de final das aulas, para pôr em revista as ocorrências mais relevantes do ano. Lembro-me muito bem da Tereza sin Verguenza, da Concepción non La Callas, do Don Giovanni Carrapatini, do Jorge Carrerini ou da Noemini Parvallotti. Um elenco lírico-dramático de luxo com sucesso cénico redundante assegurado em cada atuação. Estou certo que se passarem os olhos por aqui se reconhecerão de imediato.

Voltei a ser tratado por Tuta e Tunho bem pouco tempo numa carta digital muito especial. O isolamento absoluto verificado nos cuidados intensivos onde então me encontrava foi quebrado virtualmente nos dois últimos dias que ali passei. Foi possível graças à criação do projeto Amor Entrelinhas, baseado no lema «Combater a doença sem esquecer as pessoas». Terei sido o primeiro utente a usufruir da iniciativa dos profissionais de saúde do Hospital de Faro. Na altura tive dificuldade em expressar em poucas palavras as sensações então sentidasTal como me sinto neste momento ao tentar remediar essa lacuna procurando as tais palavras de reconhecimento que teimam em fugir-me. Fico-me com a carga afetiva que cabe num diminutivo familiar proferido por uma criança quando se dirige carinhosamente ao pai ou ao avô. Abreviam palavras e ampliam sentimentos.

3 comentários:

  1. Com esta viagem com os diminutivos pelo teu mundo de afetos, despertas em nós sensações de um infinito carinhoso. "O importante é que de emoções eu vivi ", já bem cantava o outro...

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  2. Que magnífico texto, comovente e inspirador.
    E sim, é possível passar pela pior das experiências e ainda assim, vivenciar experiências inolvidáveis.

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  3. Que lindo texto, Artur! Emoções à flor da pele e humor bem conseguido! Reconheci todos os elementos da troupe da opera buffa! :D Deve ter sido muito hilariante!

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