11 de maio de 2020

Boccaccio e as cem novelas do Decâmeron contadas em dez dias

             John William Waterhouse, A Tale from Decameron, 1916           
«Io intendo di raccontare cento novelle, o favole o parabole o istorie che dire le vogliamo, raccontate in diece giorni da una onesta brigata di sette donne e di tre giovani nel pistilenzioso tempo della passata mortalitá fatta, ed alcune canzonette dalle predette donne cantate al lor diletto. Nelle quali novelle, piacevoli ed aspri casi d’amore ed altri fortunosi avvenimenti si vedranno cosí ne’ moderni tempi avvenuti come negli antichi; delle quali le giá dette donne che quelle leggeranno, parimente diletto delle sollazzevoli cose in quelle mostrate ed utile consiglio potranno pigliare, e conoscere quello che sia da fuggire e che sia similmente da seguitare: le quali cose senza passamento di noia non credo che possano intervenire. Il che se avviene, che voglia Iddio che cosí sia, ad Amore ne rendano grazie, il quale liberandomi da’ suoi legami m’ha conceduto di potere attendere a’ loro piaceri.»
A pandemia mais devastadora de que há memória na história da humanidade ocorreu em meados do século xiv e ficou conhecida como peste negra, peste bubónica, grande peste ou somente peste. Oriunda da Ásia Central ou Oriental, entrou na Europa através da Crimeia em 1343 e espalhou-se por toda a bacia mediterrânica e restante continente num curtíssimo espaço de tempo. Ao que parece, terá sido transmitida por pulgas dos ratos que viajavam nos navios mercantes genoveses e terá provocado a morte de 75 a 200 milhões de vítimas em toda a Eurásia, o que corresponde a cerca de 30% a 60% da sua população. O pico do surto ocorreu entre 1347 e 1351, tendo a recuperação do equilíbrio demográfico durado uns 200 anos. Florença terá sido a cidade onde os efeitos foram mais acentuados, com os níveis da população anteriores ao surto a serem repostos já entrados no século xix.

O afastamento estratégico das zonas mais atingidas por qualquer tipo de pestilência, o refúgio em locais considerados seguros e o recurso a um isolamento adequado têm sido práticas correntes aplicadas ao longo dos tempos. Os anais históricos estão cheios de testemunhos desses procedimentos ancestrais, sobretudo quando se referem às mudanças constantes das cortes régias duns locais para outros, onde se estabeleciam por períodos de duração variável. As classes privilegiadas, pertencentes à alta clerezia e nobreza, bem como à burguesia endinheirada, não raras vezes substituíam a insalubridade das cidades pelo ar puro do campo. A literatura da época fornece-nos alguns exemplos dessas migrações internas em períodos de crise pandémica. Giovanni Boccaccio (1313-1375), humanista italiano e um dos promotores da passagem da Idade Média tardia para a Idade Moderna renascentista, é, porventura, o mais conhecido de todos. Fê-lo sob a forma duma coletânea de cem novelas, i.e., de relatos modernos, curtos ou longos, geralmente em prosa, escritos numa língua nacional, neste caso o toscano, de temática cavaleiresca, cortesã e de aventuras noturnas de contorno lúbrico, formando, no seu conjunto, uma legítima comédia humana.

Essa novela de novelas está distribuída por dois níveis narrativos, através do encaixe duma centena de fábulas, parábolas ou histórias de reduzida dimensão numa estrutura mais ampla aglutinadora de toda a ficção produzida. O núcleo central de eventos decorre numa Florença devastada pela peste, tendo a ação início na manhã duma terça-feira de 1348, na Igreja de Santa Maria Novella, quando sete donzelas da alta sociedade local se cruzaram por com três jovens mancebos de estatuto social idêntico que ali se encontravam a prestar culto à virgem naqueles dias de luto generalizado. A ocasião de travarem diálogo entre si proporcionou-se, bem como a resolução ali tomada de se refugiarem numa vila isolada da cidade. Para passar o tempo, elegeriam cada jornada um rei ou uma rainha, que escolheria o seu mordomo ou mordoma e determinaria as atividades a desenvolver ao longo de cada uma delas. Canto, dança, poesia, jogo, diálogo. Combinaram também que na hora de maior canícula, cada um contaria a sua novella. Por terem sido contadas em dez dias por dez contadores diferentes, Boccaccio deu-lhe o nome de Decâmeron (1350-1353).

A coletânea, dedicada às donas pertencentes à alta burguesia de mercadores florentinos, com o fim de amenizar a melancolia da solidão e do amor causada pelo afastamento dos maridos, teve um êxito imediato, que conseguiu vencer os obstáculos do tempo e chegar até nós, plasmado em edições sucessivas vertidas para todas as línguas de cultura. Que o diga Pier Paolo Pasolini, ao selecionar um número considerável desses relatos exemplares e ao passá-los da forma escrita dum livro para a filmada para o cinema, elegeu precisamente Il Decameron (1971) para inaugurar a Trilogia della Vita, porventura o mais bem-sucedido da série e que lhe granjearia o registo indiscutível no mundo da Sétima Arte. As letras e as imagens juntaram-se a uma quarentena trecentista italiana, a um confinamento voluntário duma dezena de jovens representantes das mais altas elites florentinas e demonstraram por A+B que as obras-primas da criatividade humana não têm idade. Vivem para sempre no nosso imaginário intemporal.

3 comentários:

  1. Que preciosidade, que nos lembra como a humanidade tem a criatividade para se reinventar ao longo dos tempos. Obrigada pela partilha de tão interessante documento histórico, Prof.

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  2. Uma explicação acerca da peste negra, em que os grandes srs. principalmente os governantes se refugiavam nos seus palácios campestres, enquanto o povo não resistia á doença, pelos mais variados motivos...A Europa ficou reduzida a praticamente 50% da sua população. Damos graças, por vivermos nesta época...Apesar desta pandemia, que não tem nada a ver. Graças a Deus.

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  3. Todos os dias aprendo coisas interessantes ao ler as suas publicações. Já nos tempos passados os mais abastados fugiam da cidade por causa da peste. Agora a história repetiu-se, por causa do Corona, os mais abastados fugiram para o Alentejo.

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