5 de maio de 2020

Diálogo travado em linguajar mui bárbaro e português ressuscitado


    Dia Mundial da Língua Portuguesa    

Num tempo indeterminado do futuro, um escoliasta descobriu os fragmentos dum livro publicado nos inícios dos anos 2000. Surpreendido com a linguagem decadente ali registada, traduziu-o para um português ressuscitado e comentou todos os barbarismos ali encontrados.

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Lendo a primeira Jornada por certo haveis pasmado com tão estranho linguajar e mais ainda em o moço que em a Abadessa, contudo também esta fala barbaramente. E mais advirto que se encontrais boas e bem escritas sentenças ao princípio da dita Jornada, antesmente os discursos, é isso porque eu verti para a moderna língua o que o autor escreveu, que era em tão desgraçada e estranha linguagem que não o poderíeis entender quiçá.

Achareis por certo, como disse, tal cousa de pasmar. Porém eu vos recordo que o caso se deu em os recuados primeiros dias do século vigésimo primeiro, quando a nossa portuguesa língua se perdia, o que veio depoismente a acaecer, que nosso povo tão dominado foi em corpo e em espírito que lhe preferiu a língua americangla, a que nossos cronistas também chamam hoje yeah-yeah-man. E a nossa só foi salva e revivescida em sua quase pura inteireza por esforço e estudo daqueles venerandos sábios que em boa hora e com a ajuda e a inspiração do Senhor se ajuntaram em Colégio de Arqueologia para estudar e ressuscitar o que em nós fora morto (e que era quase tudo) pelos bárbaros americanos e aqueles seus discípulos e seguidores que se assenhorearam da União, em o que não fomos mais afortunados que outros povos nossos irmãos do continente.

E àqueles que roídos de inveja ou tomados de douta arrogância dizem que esta língua portuguesa ressuscitada não é já aquela que antesmente se falava, e que o venerando Colégio confundiu em seu estudo a linguagem de muita épocas e cometeu outrossim grande soma de erros, responderei eu que não os vi a esses, nem a ninguém mais, fazer cousa melhor ou sequer alguma cousa; e hei por pouco honroso apontar erros e enganos quando nada se faz. E sobre os erros e enganos que eles apontam alembrarei eu que por o já dito desamor a nossa língua, e também por a muitas guerras e violências, se perderam quasemente todos os clássicos e que em os mais modernos magnéticos e televisivos registos e outros documentos que nos ficaram, e mui poucos eram, quasemente haviam só os discursos de gente que já não falava o escorreito português, antes era um linguajar muito bárbaro, de sorte que os sábios do dito venerando Colégio se viram em grandes e porfiados e esforçados trabalhos para de novo erguerem tão belo e nobre edifício, porém tão arrasado, que já quasemente saber não podiam o que era certo e errado.
João Aguiar, Diálogo das Compensadas. Lisboa: Asa, 2001, 13-14

2 comentários:

  1. Um excerto que bem regista a lucidez e sabedoria inatas à escrita de João Aguiar. É uma reflexão importante neste mundo moderno onde a língua portuguesa é atropelada diariamente, começando pelas transmissões da própria televisão estatal. Como é possível haver um programa onde dois dos cinco participantes são escritores e os genéricos são principalmente em inglês tipo "fight diver" e "video bite"?

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  2. Maria da Conceição Andrade7 de maio de 2020 às 09:26

    Uma delícia, este livro! Ainda ontem, ao ouvir os Prós e Contras, comentei o uso da língua "americangla". É o "lay off" são as "guide lines" e as "red lines", os "clusters"... enfim! Não pretendo o "português ressuscitado", mas detesto o "linguajar bárbaro" que impera. Bom Dia Mundial da Língua Portuguesa.

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