16 de outubro de 2020

Os olhares de Fernando Pessoa olhados por José de Almada Negreiros

JOSÉ DE ALMADA NEGREIROS


Os dois retratos de Fernando Pessoa representam o poeta de costas voltadas, se os expusermos lado a lado por ordem cronológica crescente de fixação na tela pelo olhar de Almada Negreiros. O mais antigo está voltado para a nossa esquerda e o mais recente para a nossa direita. Estão logicamente impedidos de se olhar de frente. Nem sequer estão a olhar para o que estão a fazer ou a não-fazer. Cigarro na mão esquerda, mão direita sobre uma folha de papel de cores diferentes a suportar, também ela, uma caneta inativa à espera de ser usada. O mesmo se diga das chávenas de café que ocupam também as partes opostas da mesa de café, provavelmente o Martinho da Arcada ou a Brasileira do Chiado, a fazerem companhia ao Orpheu 2, para o qual está a olhar de revés. Nós olhamos atentamente para o chapéu, laço e óculos  inconfundíveis do poeta. Este não se digna olhar para quem o olha, compenetrado que está a olhar para o vazio. Perna cruzada, sapatos pretos, camisa e meias brancas. A elegância britânica que o carateriza bem destacada por quem o olhou e fixou nos dois óleos, o de 1954 de 201 x 201 cm, o de 1964 de 225 x 226 cm.

As duas variantes do retrato de Fernando Pessoa colocam-nos agora o poeta pintado para o restaurante Irmãos Unidos voltado para o encomendado para a Fundação Calouste Gulbenkian, se as alinharmos por ordem cronológica decrescente de fixação na tela pelo olhar de Almada Negreiros. A sensação de simetria é mais visível nesta nova postura dispositiva, apesar dos pequenos pormenores cromáticos e de tamanho assinalados. Para todos os efeitos, os retratados continuam a evitar o olhar um do outro. Quem olha no infinito da criação poética olha para além do olhado pelos sentidos prosaicos dos simples mortais. O próprio criador plástico olhou com um olhar simbólico feito de memórias o vulto maior da primeira modernidade, falecido em 1935, cerca de 20 anos antes da primeira versão e 30 da segunda. Olhares póstumos dum sublime intemporal a marcar tanto o olhar cubista do retratista como o olhar perdido no vazio do retratado. Intersecionismos oblíquos de planos, o pictórico e o verbal, cruzamento sobreposto de sensações estéticas dúbias feitas com cromatismos descritivos e palavras desenhadas a que só a arte consegue atingir e olhar na sua total plenitude.
 

JOSÉ DE ALMADA NEGREIROS

3 comentários:

  1. Belíssimo o olhar do génio de Almada Negreiros sobre o génio de um dos maiores vultos da literatura portuguesa! E belíssimo é este teu olhar de palavras escritas sobre a genialidade de dois dos maiores representantes da cultura portuguesa! Obrigada por esta partilha pedagógica, Prof.!

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  2. "Vivia só, de costas viradas para o mundo que o rodeava e apenas preocupado com o seu grande universo interior", escreveu Moitinho de Almeida, sobre FP.

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