5 de outubro de 2020

As saudades monárquicas de Ricardo Reis em tempo de república...

Café Royal & Hotel Bragança

O bagageiro levanta o boné e agradece, o táxi arranca, o motorista quer que lhe digam, Para onde, e esta pergunta, tão simples, tão natural, tão adequada à circunstância e ao lugar, apanha desprevenido o viajante, como se ter comprado a passagem no Rio de Janeiro tivesse sido e pudesse continuar a ser resposta para todas as questões, mesmo aquelas, passadas, que em seu tempo não encontraram mais que o silêncio, agora mal desembarcou e logo vê que não, talvez porque lhe fizeram uma das duas perguntas fatais, Para onde, a outra, e pior, seria, Para quê. O motorista olhou pelo retrovisor, julgou que o passageiro não ouvira, já abria a boca para repetir. Para onde, mas a resposta chegou primeiro, ainda irresoluta, suspensiva, Para um hotel, Qual, Não sei, e tendo dito, Não sei, soube o viajante o que queria, com tão firme convicção como se tivesse levado toda a viagem a ponderar a escolha, Um que fique perto do rio, cá para baixo, Perto do rio só se for o Bragança, ao princípio da rua do Alecrim, não sei se conhece, Do hotel não me lembro, mas a rua sei onde é, vivi em Lisboa, sou português, Ah, é português, pelo sotaque pensei que fosse brasileiro, Percebe-se assim tanto, Bom, percebe-se alguma coisa, dezasseis anos que não vinha a Portugal, Dezasseis anos são muitos, vai encontrar grandes mudanças por cá, e com estas palavras calou-se bruscamente o motorista.

[…]

Parou em frente de um café, acrescentou, O melhor será ir ver primeiro se há quartos, não posso esperar mesmo à porta por causa dos elétricos. O passageiro saiu, olhou o café de relance, Royal de seu nome, exemplo comercial de saudades monárquicas em tempo de república, ou remanescência do último reinado, aqui disfarçado de inglês ou francês, curioso caso este, olha-se e não se sabe como dizer a palavra, se rôial ou ruaiale, teve tempo de debater a questão porque já não chovia e a rua é a subir, depois imaginou-se regressando do hotel, com quarto ou ainda sem ele, e do táxi nem sombra, desaparecido com as bagagens, as roupas, os objetos de uso, os seus papéis, e a si mesmo perguntou como viveria se o privassem desses e todos os outros bens. Já ia vencendo os degraus exteriores do hotel quando compreendeu, por estes pensamentos, que estava muito cansado, era o que sentia, uma fadiga muito grande, um sono da alma, um desespero, se sabemos com bastante suficiência o que isso seja para pronunciar a palavra e entendê-la. 

José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis (1984: 17-18)

2 comentários:

  1. A escrita inconfundível de Saramago, crítica e envolvente, desafiando a nossa capacidade de interiorização. Um texto oportuno para registar o 110o aniversário da implantação da República, Prof!

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  2. Tão bommm!
    Possuímos esse título, hei de ler!

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