22 de outubro de 2020

Laurent Binet: HHhH ou do cérebro de Himmler chamado Heydrich

« Pour ces gens-là, Heydrich est un instrument, pas encore un rival. Certes, dans le couple infernal qu’il forme avec Himmler, il est considéré comme le cerveau (" HHhH ", dit-on dans la SS : Himmlers Hirn heißt Heydrich – le cerveau d’Himmler s’appelle Heydrich), mais il reste le bras droit, le subordonné, le numéro deux. L’ambition d’Heydrich ne saurait se contenter éternellement de cette situation, mais pour l’heure, quand il étudie l’évolution des rapports de force au sein du parti, il se félicite d’être resté fidèle à Himmler, dont le pouvoir ne cesse de s’élargir, tandis que Göring se morfond dans une semi-disgrâce, depuis l’échec de la Luftwaffe en Angleterre. »
Laurent Binet, HHhH (2010)
Vi em tempos num canal da televisão por cabo O homem do coração de ferro (1917), um filme realizado por Cédric Jimenez, numa adaptação ao cinema da biografia do dirigente nazi Reinhard Heydrich, o cérebro de Himmler, composta por Laurent Binet, com o título algo bizarro de HHhH (2010), obra contemplada nesse mesmo ano com o Prix Goncourt du Premier Roman. Impossível negar que fiquei impressionado com a crueldade dos sucessos registados em celuloide e transmitidos no pequeno ecrã, sobretudo por se referirem a uma realidade vivida num passado assaz recente e a excederem em muito os cenários de terror imaginados pela ficção pura. Chegou-me agora às mãos a versão original impressa em papel, que li em ses-sões espaçadas, para assim digerir um pouco melhor as barbaridades cometidas pelos seus protagonistas, um mal-estar só atenuado pela qualidade superior de escrita do autor francês.

O romance inaugural do jovem criador anunciava já nas suas linhas gerais o percurso criador que trilharia no futuro, a ligação estreita da história e da ficção num pacto de leitura muito especial, um autêntico tubo de ensaio para a implementação plena da dimensão ucrónica, na tentativa hipotética de substituição dos eventos registados nos anais oficiais por uma alternativa mais humanista, não como se deram de facto  mas como poderiam ter dado, de acordo com a vontade do narrador-falsificador. Esta técnica definida por Umberto Eco num artigo centrado nos mundos da ficção científica*, foi ampliada em crescendo nos títulos seguintes, A sétima função da linguagem e as Civilizations, que lhe valeriam os mais altos galardões literários do seu país, com destaque para os atribuídos pelo Cercle de l'Union Interalllié e pela Académie française. 

Mais do que uma biografia tradicional duma figura sinistra do III Reich germânico, apelidado pelos resistentes como o Carniceiro, a Besta Loura, a Cabra, ou o Carrasco de Praga, a descrição circunstancial da «Operação Antropoide», aquela que pôs fim à vida do Quatro Agás o braço direito de Himmler, transforma-se, de certo modo, num relatório pessoal de pesquisa, num ensaio-estudo de como compor um romance histórico sem fugir à verdade histórica ou numa autobiografia parcelar do autor-relator, também ele convertido numa personagem real/fictícia da reconstituição dos sucessos dramáticos representados na capital Checa naqueles fatídicos dias limítrofes ao assassinato do SS-Obergruppenfürer, General der Polizei e chefe da Reichssicherheitshauptamt, a 27 de maio de 1942.

Quer queiramos ou não, os romances históricos aproximam-se todos eles em maior ou menor grau das normas definidas pela dimensão ucrónica, ainda que os seus obreiros tenham feito os impossíveis por seguirem à risca a realidade recriada posta em crónica. Nesta área do conhecimento ancorada numa disciplina que estuda a sequência de sucessos passados, sabe-se sempre o resultado da sua ação no presente, mas ficam sempre em aberto os espaços deixados em branco pelos documentos escritos para memória futura, elaborados regra geral segundo o perspetiva unilateral das partes vencedoras, com recurso a toda a retórica disponível. O papel do romancista torna-se particularmente difícil de levar a bom termo com o rigor exigido pelo género e ser capaz ao mesmo tempo capaz de agradar ao público leitor a quem se destina, sem distorcer por pouco que seja as provas recolhidas com o fator poético exigido e desejado. A descrição de espaços eventualmente mudados, a reprodução de diálogos artificiais inevitavelmente imaginados, a veracidade dos testemunhos diretos e indiretos recolhidos para que constem farão sempre parte dos problemas com que o género se terá de debater.    

O desejo de poupar a vida do eslovaco Jozef Gabčík e do checo Jan Kubiš, os dois exilados recrutados pela inteligência britânica para levar a bom termo a missão que lhes fora confiada de eliminar o governador do Protetorado da Boémia e Morávia, aquele a quem Hitler designava como o Homem do Coração de Ferro, está bem presente em muitas passagens do texto. Acontece que a História é uma genuína fatalidade em curso, que manifesta uma profunda diver-gência formal com a Literatura, podemos lê-la e relê-la em todos os sentidos, mas não podemos reescrevê-la à nossa vontade, sempre que o desfecho não nos satisfaça. O próprio autor está convicto dessa realidade inexorável. Pode expor o seu desagrado pelo desenlace dos episódios narrados, mas tem de se render à realidade dos factos, por mais injustos que sejam ou lhe pareçam ser. Ou se conforma e segue em frente com toda a honestidade que o rigor histórico lhe ditar ou terá de mudar de paradigma literário para que o ato criativo funcione em toda a sua plenitude. Em boa hora para os amantes da sua escrita, que Laurent Binet conseguiu encontrar um equilíbrio estável entre as duas dimensões antagónicas de reportar os factos acontecidos. Forma original, dizem os críticos e eu subscrevo plenamente. Pelo menos nunca vi nada igual ou sequer parecido e em tal profusão em nenhum outro romancista. Que venha mais outro ou vários com o mesmo espírito inventivo que nunca serão demais.

NOTA
* Umberto ECO, «Os mundos da ficção científica», in Sobre os Espelhos e outros ensaios. [1985]. Lisboa: Difel, 1989, p. 202.

3 comentários:

  1. Um texto que torna o assunto 'Holocausto' apelativo, se eu conseguisse ultrapassar a minha resistência atual de ter um contacto mais próximo com a real crueldade humana. Existem homens altos ou baixos, gordos ou magros, sérios ou brejeiros, acéfalos ou inteligentes, bons ou maus, uma dicotomia que consigo aceitar. Mas ultrapassa a minha capacidade de aceitação quando a maldade humana chega ao extremo de maltratar física e psicologicamente o próximo para atingir os fins propostos, apenas porque o poder assim lho permite. A existência de HHhH's faz-me sentir incapacitada... Um outro título de Laurent Binet, que não conheço mas tanto louvas, terá a minha atenção...

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    1. O texto é duro no conteúdo tratado mas cativante na forma. Laurent Binet é, sem dúvida, um do grandes criadores da literatura francesa atual. recomendo-o a quem gosta das palavras compostas com arte poética e não se assuste com os jogos provocadores de ironia inovadora.

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  2. Durante a adolescência li muito sobre o holocausto, uma amiga/colega possuía uma coleção grande, pertença de 2 irmãos mais velhos. Só recentemente voltei ao tema através de Primo Levi, Richard Zimler e o português João Pinto Coelho. Evidentemente não comparo a ficção com a vivência pessoal de horrores tais.
    Tudo para dizer que dificilmente voltarei ao tema do holocausto.

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