8 de outubro de 2020

Isabel Allende e as memórias de Eva Luna, uma artífice de histórias de vida

«Me llamo Eva, que quiere decir vida, según un libro que mi madre con-sultó para escoger mi nombre. Nací en el último cuarto de una casa sombría y crecí entre muebles antiguos, libros en latín y momias huma-nas, pero eso no logró hacerme melancólica, porque vine al mundo con un soplo de selva en la memoria. Mi padre, un indio de ojos amarillos, provenía del lugar donde se juntan cien ríos, olía a bosque y nunca mi-raba al cielo de frente, porque se había criado bajo la cúpula de los ár-boles y la luz le parecía indecente. Consuelo, mi madre, pasó la infan-cia en una región encantada, donde por siglos los aventureros han buscado la ciudad de oro puro que vieron los conquistadores cuando se asomaron a los abismos de su propia ambición. Quedó marcada por el paisaje y de algún modo se las arregló para traspasarme esa huella.»
Isabel Allende, Eva Luna (1991)

Um ano após o lançamento do terceiro romance de Isabel Allende, o Eva Luna (1997), viajei por cerca de metade da edição de bolso que comprei numa livraria local, felizmente ainda de portas abertas a resistir estoicamente às sucessivas crises cíclicas destes últimos tempos. Fi-lo num final de agosto e de férias de verão com o regresso ao trabalho já de portas abertas, o que me terá levado a interromper momentaneamente a leitura. Por motivos que agora me escapam, o volume já meio amarelecido com a chancela da Plaza & Janes de Barcelona acabou esquecido num caixote, no meio de muitos outros colegas seus feitos de papel e tinta igualmente condenados a um exílio injustificado. Recuperei-o agora por acaso duas décadas e picos passados. Levei-o a banhos estivais de mar e sol, reiniciei a visita desde a primeira à última página e ouvi as histórias de vida suspensas no ar num fôlego carregado de iodo.

Eva Luna, a protagonista-narradora, é uma contadora compulsiva de fábulas, as suas e as alheias, umas e outras entrelaçadas no tecido textual desenvolvido em forma de autobiografia aberta a outras biografias diversas. Relação atribulada de inspiração pícara dizem alguns. Relato eclético de formação individual com muitas vias genéricas de realidades experienciadas e imaginadas diria eu. É que a heroína, apesar do seu percurso acidentado de vida, consegue escapar, por mérito próprio, ao estigma castrador da anti-heroicidade. Sabe sempre escolher os melhores trilhos por onde andar à procura duma realização pessoal completa. Fá-lo através duma técnica apurada de escrita, onde os apontamentos de ficção histórica latino-americana vizinha do romance de ditador e a resvalar para o realismo mágico então em voga no Novo Mundo com forte impacto estético no Velho Continente. Os ecos dos livros de aventuras e de amores românticos, as peripécias rocambolescas dos folhetins radiofónicos, das novelas televisivas ou dos contos das 1001 noites, marcam a presença no fluir discursivo escolhido, onde não falta também um cheirinho de utopia dum paraíso prometido e perdido nesse universo não identificado de refugiados, emigrantes e viajantes pobres, de crises políticas constantes e de tiranetes hereditários de nome próprio desconhecido.  

O percurso de vida traçado pela filha dum índio amazónico de olhos amarelos a cheirar a bosque e duma órfã abandonada de pele branca e o cabelo vermelho como um incêndio na cabeça tem muito pouco a ver com a prima em segundo grau do presidente socialista Salvador Allende, assassinado em setembro de 73 por um golpe militar de feição fascizante. Têm a arte da escrita a uni-las, criadoras de destinos inventados como se tivessem acontecido. Talvez seja preferível afirmar estarmos na presença dum alter ego feito de memórias dispersas colhidas pela escritora chilena nascida no Peru, na tradição ancestral das américas indígenas de fala ibérica, onde nasceu, cresceu e formou, antes de ter sido obrigada a expatriar-se por períodos mais ou menos longos noutros recantos da grande aldeia global, todos eles libertos dos regimes totalitários de duração recorrente a pender para permanente, e a tornar-se por força das circunstâncias numa cidadã estadunidense.

As crónicas-contos compilados ao sabor da pena e do processo de amadurecimento para a idade adulta acabam por nos traçar um testemunho simultaneamente singular da sua obreira e coletivo da miríade de personagens que aparecem, desaparecem e por vezes reaparecem na malha labiríntica de destinos cruzados ao virar da página. Relatos circulares e cruzados dum passado recente que, mutatis mutandis, até podiam ser as destes nossos tempos conturbados, marcados todos eles por um crescendo de abusos ilimitados de poder, exercidos por pequenos e grandes opressores eleitos nas urnas ou impostos pela força das armas. Os exemplos de imitadores grosseiros ou lunáticos de déspotas encartados ou encapotados com provas prestadas não faltam por aí, até nos espaços planetários mais insuspeitos, onde a palavra democracia é gritada à boca cheia como palavra de ordem e é tida como imagem de marca identitária hasteada nas mais altas instâncias internacionais. História exemplar com final feliz como gostaríamos de ver replicada um pouco em toda a parte, a convidar os leitores a imitarem a ficção tal como esta tem por uso imitar-nos a nós, simples mortais a peregrinar pela vida.

2 comentários:

  1. Mais uma excelente resenha, Prof.! A fabulosa criatividade de Isabel Allende está bem patente neste romance de um profundo humanismo, que se reencontra mais tarde em "Os Contos de Eva Luna". Isto é um convite a reler os livros de Isabel Allende...

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  2. Eva Luna, a porta que abri para entrar no universo de Isabel Allende. Já lá vão 26 anos.
    Ao invés da maioria dos seus leitores não comecei pela Casa dos Espíritos, mas lá cheguei e continuei até me sentir satisfeita...
    Gostei muito do seu texto.

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