5 de julho de 2021

Quando as palavras falam de música

100 Canções de Haruki Murakami

[15 de junho de 2018]

«A rádio do táxi estava sintonizada numa estação em FM e transmitia música clássica. A Sinfonietta de Janáček. Não se podia dizer que fosse a obra ideal para ouvir no meio de um engarrafamento. O taxista também não parecia dar grande atenção ao programa. Homem de meia-idade, contentava-se em observar calado a interminável fila de carros, estendendo-se diante dele, na passagem superior da autoestrada, como um pescador veterano que, de na proa do seu barco, interpreta os sinais ameaçadores na linha de convergência de duas correntes marítimas. Bem recostada no assento traseiro, de olhos fechados, Aomame escutava a música. Quantas pessoas no mundo saberiam identificar aquela peça, aos primeiros acordes, como sendo a Sinfonietta de Janáček? A resposta deverá andar entre “muito poucas” e “quase nenhumas”. Mas, por qualquer razão, Aomame era uma das poucas habilitadas para o fazer. Janáček escreveu a sua pequena sinfonia em 1926. O tema foi por ele composto, originalmente, como uma fanfarra para uma competição despor-tiva. Aomame imaginou a Checoslováquia no ano de 1926. A Primeira Guerra Mundial havia terminado, e o país libertara-se, por fim, do longo reinado da Casa de Habsburgo. As pessoas bebiam cerveja pilsner nos cafés, produziam elegantes metralhadoras ligeiras e saboreavam a paz efémera que se instalara na Europa. Dois anos antes, Franz Kafka tinha abandonado este mundo na mais completa obscuridade. Pouco depois surgiria Hitler, vindo do nada para, num abrir e fechar de olhos, devorar aquele pequeno e belo país, sem que as pessoas soubessem que ia acontecer algo de tão terrível. Talvez seja esta a mais importante lição que a História ensina: “À época, ninguém podia saber o que o futuro lhes reservava.” Com a música de Janáček nos ouvidos, Aomame imaginou o vento ameno soprando através das planícies da Boémia, enquanto meditava sobre as vicissitudes da História. [] Em todo o caso, interrogou-se Aomame, o que a teria levado a reconhecer logo a peça e a identificá-la como sendo a Sinfonietta de Janáček? E como sabia ela que fora composta em 1926? Não era grande fã de música clássica, nem se podia dizer que tivesse alguma recordação pessoal relacionada com Janáček. Apesar disso, no momento em que escutou os acordes iniciais, foi como se todo o seu conhecimento da peça lhe viesse à mente, de forma automática. Como se um bando de pássaros entrasse a voar numa sala por uma janela aberta. Além do mais, aquela música transmitia-lhe uma sensação estranha, dilacerante, equivalente a uma “torção” interna. Sem que associado a ela houvesse dor ou mal-estar, mas apenas a impressão de que todos os elementos do seu corpo estavam a ser fisicamente comprimidos e retorcidos. Aomame não fazia ideia do que se passava com ela. Por que motivo lhe causaria a Sinfonietta aquela sensação inexplicável?»

Haruki Murakami, 1Q84 (2009)

2 comentários:

  1. As palavras de Haruki Murakami são música, moldáveis ao ritmo que ele impõe aos enredos. Feliz leitura das "100 Músicas", que será acompanhada de muita melodia...

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    1. A melodia das palavras vertidas para português com referências constantes às melodias tocadas-cantadas por uma batuta verbalizada que o YouTube ajuda a sonorizar...

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