「青豆はそのあとたまたま「渚にて」という映画をテレビの深夜放送で見た。一九六〇年前後につくられたアメリカ映画だ。アメリカとソビエトとのあいだで全面戦争が勃発し、大量の核ミサイルがトビウオの群れのように大陸間を盛大に飛び交い、地球があっけなく壊滅し、世界のほとんどの部分で人類が死に絶えてしまう。しかし風向きかなにかのせいで、南半球のオーストラリアだけにはまだ死の灰が到達していない。とはいえそれがやってくるのは時間の問題である。人類の消滅は何をもってしても避けられない。生き残った人々はその地で、来るべき終末をなすすべもなく待っている。それぞれのやり方で人生の最後の日々を生きている。そんな筋だった。救いのない暗い映画だった(しかし、それにもかかわらず、誰もが心の奥底では世の終末の到来を待ち受けているものだと、青豆はその映画を見ながらあらためて確信した)。」村上春樹, 「1Q84-1」(2009)
Uma trilogia, terceto ou tríptico é um grupo de três obras que guardam algo de comum entre si, formando uma unidade temática. Já li o livro 1 (abril-junho) concebido por Haruki Murakami no 1Q84 (2009) e tenho também à minha frente os demais tomos da série romanesco, ciclo heroico ou drama utópico. Estou ansioso por saber o que têm para me dizer, a fim de concluir o que os meses desse misterioso mundo-com-um-ponto-de-interrogação me revelaram até agora nesta fábula orwelliana dos nossos dias. É que se atendermos no facto do número nove e da letra Q se pronunciarem em japonês do mesmo modo, kyū, então o 1984, várias vezes referido no texto, surge-nos logo na mente. É o que as tradutoras da edição portuguesa da Casa das Letras anotam em pé-de-página. Por outro lado, o quê de nove maiúsculo poderá ainda representar, como afirma a criadora interna do termo, o Q inicial da expressão Question mark [Q/q>?], o diacrítico usado para pontuar uma realidade carregada de enigmas, à imagem deste roman-fleuve, cujo caudal flui por três correntes, braços ou afluentes narrativos de longo curso, desde a nascente até à foz.
Lidos os livros mais emblemáticos do autor nipónico, tropeçamos a cada passo com muitos traços estruturais e temáticos comuns, unidos quase todos pelo insólito dos cenários reportados numa prosa poética única. O Estranho predomina no primeiro painel do retábulo pintado com palavras nas duas histórias cruzadas que partilham entre si a trama, a revelar um Fantástico sugerido pelas hesitações sentidas pelas personagens e a apontar para um Maravilhoso ainda incipiente. O universo teórico de Tzvetan Todorov* volta à ribalta em grande estilo. O sumiço súbito duma figura fulcral do Sputnik, meu amor fica por clarificar até ao final do relato, deixando-nos na fronteira do natural/sobrenatural, gizando a tese do refúgio num espaço paralelo ao nosso. A possibilidade dum mundo análogo à chuva de peixes e sanguessugas ou à comunicação oral com gatos ou mental com um cão e uma pedra no Kafka à beira-mar está ausente, mas as alusões a uma cabra cega, a um Povo Pequeno, a uma crisálida de ar ou as duas luas no céu prometem algumas singularidades futuras.
Os diálogos travados pelos interlocutores saltam do cinema para a música, da literatura para a matemática, da história para a ciência, da política para a religião, da economia de mercado para a planificada. A referência a carros, roupas, bebidas, tabacos, perfumes de marca pulula sem parar. Os monólogos interiores a itálico dos protagonistas com direito a título de capítulo convivem com o registo a negrito de frases-chave dos deuteragonistas ditas em momentos especiais da ação. Referem-se a atos de bullying, violação, maus-tratos, abusos sexuais e violência doméstica, crimes hediondos contra as mulheres em geral e as meninas em particular, a merecerem um castigo exemplar. Alude-se ainda num ritmo crescente ao poder totalitário e repressivo duma Vanguarda e dum Amanhecer, comunas secretas, alegadamente rurais, que parecem ligar de modo indelével todos os fios da meada usada na urdidura discursiva. Como se insinua no texto, o mundo distópico liderado pelo Big Brother no 1994 de George Orwell a ser atualizado em 1994 no mundo alotópico povoado pelo Little People do 1Q84 e imaginado à maneira de Umberto Eco**.
Este romance pós-moderno, que nos fala doutros romances ideados em épocas distintas, remete-nos grosso modo para o âmbito tripartido do romance antigo greco-bizantino de amores e aventuras. Aomame e Tengo encontram-se aos dez anos, perdem-se de vista nas duas décadas seguintes e continuam à espera dum reencontro final ainda por efetivar que sele a paixão sentida secretamente um pelo outro. A dar crédito no San Francisco Chronicle, como eu dou, a escrita do eterno candidato japonês ao Nobel da Literatura cria dependência. Vejamos se a leitura do segundo volume me desperta tanta vontade de pegar no terceiro, como o final deste primeiro me aguçou o apetite de degustar os episódios seguintes da saga peregrina do professor de matemática com aspirações a romancista e escritor-fantasma d'A Crisálida de Ar e da professora de artes marciais e assassina em série nas horas vagas.
Belo texto, Prof., sobre a criatividade de Murakami, que conheci em "Kafka à beira-mar". É uma verdadeira maratona a leitura desta trilogia em que a tónica sobre um mundo orweliano a torna ainda mais apelativa.
ResponderEliminarEstou entusiasmado com a sequência e a lê-la muito calmamente para demorar mais tempo a chegar ao fim, é que a maratona também se pode fazer sem ser a correr...
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