21 de julho de 2021

Nuno Gonçalves e as histórias pintadas dos Painéis de São Vicente em Lisboa

     Nuno Gonçalves, Painéis de São Vicente (c. 1470)     
[Lisboa - Museu Nacional de Arte Antiga das Janelas Verdes]

O quingentésimo aniversário da morte do Infante Dom Henrique (1960) apanhou-me entre a segunda e a terceira classes, com as férias grandes de verão de permeio. Apesar das aulas de História estarem centradas no quarto e último ano do ensino primário, os ecos ampliados da efeméride não deixaram de se fazer sentir tanto nas escolas do bairro da Ponte como na da praça do Peixe que então frequentava nas Caldas da Rainha. Lembro-me de muito poucas iniciativas alusivas ao momento, organizadas com grande pompa e circunstância pelo Estado Novo, tais como a inauguração do Padrão dos Descobrimentos ou o lançamento especial de selos coloridos, de medalhas de prata e da diversa iconografia pintada ou esculpida do homenageado, representado sempre de chapeirão negro de aba larga e a segurar por vezes uma nau de brinquedo, a comprovar o seu epíteto de Navegador. A minha memória de infância guardou ainda a imagem esfumada dum calendário de parede editado pela SACOR e profusamente ilustrado pelo mestre António Lino, que agora voltei a rever em parte na Net. As particularidades algo exóticas das gravuras levaram-me mais tarde à Biblioteca Municipal à época instalada nos Pavilhões do Parque, onde encontrei e devorei os estudos de Belard da Fonseca em cinco tomos, os tais que me introduziram de vez n'O Mistério dos Painéis (1957-1967), obra completada pelo polémico D. Henrique? D. Duarte? D. Pedro? (1960).

Na década de 70, instalado em Lisboa, aproveitei muitas manhãs e tardes livres para visitar o Museu das Janelas Verdes e olhar com olhos de ver para todas as obras maiores da cultura portuguesa doutros tempos ou sem tempo no tempo. Olhar para os seis painéis com jogos de olhares, enigmáticos, de quem olha para o indefinido ou se deixa olhar sem olhar para a dupla figura central. Há quem diga que se trata de São Vicente outros do Infante Santo, a rivalizar com um número crescente de hipóteses alternativas, entre as quais a do Rei Dom Duarte, da Rainha Dona Isabel de Coimbra, de São Tiago Menor, da Infanta Dona Catarina, do Cardeal Dom Jaime e até dum Arauto da Era do Espírito Santo. Cada cor seu paladar. Pessoalmente continuo a preferir tratar-se dos irmãos gémeos São Crispim e São Crispiniano, os primeiros padroeiros da cidade de Lisboa. Todavia, a tese predominante nessa altura continuava a ser a Vicentina a debater-se em grande, com unhas e dentes, com a Fernandina. Pelo menos era a ideia com que se ficava, quando se ouvia a interpretação profissional  e convicta dos cicerones de serviço às visitas de grupo. O problema de se tratar dum só políptico e não de dois trípticos parecia estar então resolvida, após os contributos de José de Bragança e Almada Negreiros em proporem essa disposição com base nas leis da perspetiva do olhar, oferecidas pelos ladrilhos que as 60 figuras retratadas pisam.

Decorrido meio século e entrados no .º milénio, continuamos sem saber de fonte segura que pintura é esta para onde olhamos, quem a pintou, de onde veio e para onde ia, que título lhe devemos dar e quem está de facto ali retratado. vontade de esperar pelo resultado final do relatório clínico do mediático restauro atualmente em curso, para decifrar a chave dos mistérios ainda presentes na mais polémica pintura portuguesa de todos os tempos. Aguardar com calma que os acréscimos das anteriores intervenções sejam eliminados e que o resultado final nos devolva de uma vez por todas o seu traçado originalUma certeza, porém, deve ficar no horizonte. Tudo o que se possa ainda dizer sobre as tábuas quatrocentistas, mais não será do que uma mera lucubração, a roçar amiúde a fantasia, sobre o significado da obra-prima monumental de Nuno Gonçalves, ou de João Eanes, ou de ambos ou dum outro qualquer criador anónimo de imagens a duas dimensões, coloridas a óleo e têmpera sobre madeira de carvalho, nascido sabe-se lá bem onde. Entretanto, fixemo-nos nos olhares dos clérigos, pescadores, damas, santos, nobres e cavaleiros. Dir-se-ia que se deixam olhar sem nos olharem de frente. Tristes, sisudos, pesarosos, circunspectos, graves. Que pena não termos a ajuda do Desmond Morris para nos revelar as posturas do corpo na linguagem da arte destas figuras enigmáticas com mais de 500 anos de vida.

3 comentários:

  1. Belo texto, Prof.! É sempre interessante ouvir falar das discussões sobre o autor e as personagens representadas, começando pelo prazer maior de conseguir admirar esta magnífica pintura!

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    1. Os painéis continuam a ser um mar de interpretações desencontradas, qual delas a mais disparatada. Vá-se lá saber quem tem razão...

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  2. Até "aborrece"! Sempre tão claro e, ainda por cima, com lembranças longínquas e lições tão claras. Obrigado, Artur.

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