23 de agosto de 2021

Das utopias imaginárias do faz-de-conta às distopias reais do dia-a-dia

“ Les utopies apparaissent comme bien plus réalisables qu'on ne le croyait autrefois. Et nous nous trouvons actuellement devant une question bien autrement angoissante : comment éviter leur réalisation définitive ?... Les utopies sont réalisables. La vie marche vers les utopies. Et peut-être un siècle nouveau commence-t-il, un siècle où les intellectuels et la classe cultivée rêveront aux moyens d'éviter les utopies et de retourner à une société non utopique moins “ parfaite » et plus libre. —NICOLAS BERDIAEFF
Aldous Huxley, Brave New World (1931)

quem diga e acredite que as utopias são possíveis, apesar de até à presente data só se vislumbrarem no universo imaginário da ficção. O mesmo gostaria de afirmar das distopias se, de facto, estas não existissem já em alguns recantos bem reais deste nosso mundo atual. Nascem pela força, morrem pela força, renascem pela força. Em nenhum momento são escolhidas pelo livre-arbítrio de quem as vive pela vontade determinista de terceiros, os salvadores iluminados por um qualquer fundamentalismo de sentido político, económico ou religioso. A leitura literal e ortodoxa da Bíblia e do Alcorão - para nos restringirmos ao domínio das alegadas revelações divinas - têm sido fruto de muitos equívocos de inquisições e jiades de toda a espécie e feitio. Os exemplos têm-se multiplicado ao longo dos séculos e milénios um pouco por toda a parte. A uni-los tem estado sempre a intolerância, o fanatismo e o autoritarismo absolutos.

Imaginemos a Gileade das escrituras sagradas judaicas, projetemo-la no antigo território dos EUA após uma fictícia segunda guerra civil e olhemos essa nova república teocrática, regida como um «monte de testemunho» da doutrina cristã dogmática, radical e integrista. O tecido social é regido pelo poder absoluto dos homens sobre as mulheres, a quem é negado o direito de trabalhar, de possuir bens, de conduzir, de ler, de ter qualquer papel na comunidade que fuja à hierarquia imutável do sistema de castas instituído: comandantes-olhos-caçadores-guardiões-economistas a dominarem as esposas-tias-servas-martas-jezebels. Os casamentos forçados, o rapto de crianças, os estupros rituais, as escravas sexuais, as mutilações físicas, os castigos corporais, o envio para as colónias, as execuções públicas por enforcamento e lapidação, o dente por dente e o olho por olho pela menor infração à lei divina em vigor.

A República de Gileade foi ficcionada por Margareth Atwood como pano de fundo do The Handmaid's Tale (1985), um bestseller várias vezes premiado e adaptado ao cinema e à televisão. Foi nesta última forma, produzida por Bruce Miller em regime de streaming (2017)*, que o relato se converteu ato contínuo num sucesso mediático a nível global, indo já na quarta temporada com uma quinta a caminho. Anterior ao advento triunfante dos Talibã, movimento estudantil terrorista, difundido a partir do Paquistão em 1994 e exercido como poder efetivo no Emirato Islâmico do Afeganistão fundado em 1996. Depois de o terem perdido em 2001, voltaram a recuperá-lo em 2021, qual Fénix Renascida das trevas da militância ideológica e criminosa islâmica que a norteia, o romance-série de cariz premonitório dá-nos o alerta para a ténue fronteira existente entre as utopias imaginárias do faz-de-conta e as distopias reais do dia-a-dia.

                              Servas  -  Romance  -  Série  -  Burcas                              
NOTA
(*) A série tem vindo a ser transmitida entre nós pela TVCine  Emotion da televisão por cabo.

4 comentários:

  1. Um tema sempre quente da nossa sociedade, que parece estar constantemente na fronteira de mundos distópicos. Lembro-me de Michel Houellebecq e do seu livro Submissão e fico atordoada com a premonição de nos deixarmos facilmente subjugar pela ideias das trevas próprias da Idade Média...

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    1. As distopias reais pululam por aí, nós é que já nem nos damos conta delas, tão corriqueiras se tornaram. Geralmente associamo-las a movimentos religiosos, políticos e sociais diferentes daqueles a que estamos habituados. A originalidade da distopia imaginada por Margaret Atwood reside na circunstância de se passar num tempo antecipado muito próximo do nosso e envolver um país cujos presidentes ainda continuam a jurar fidelidade em nome de deus com a mão pousada na Bíblia, a tal que passou a reger os destinos de Gideade, depois da segunda guerra civil americana ter derrotado os EUA. Ironia trágica que nos deixa de facto intranquilos sobre o discernimento dos povos, por muito avançados que se considerem...

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  2. Não é a primeira e não será a última vez que a literatura assume o papel da Pitonisa de Delfos.
    Os dados voltaram a ser jogados.

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    1. A tentativa ancestral da literatura antecipar as fases vindouras da humanidade e quase sempre a ser mais otimista do que a realidade que nos envolve. O romance-série é um exemplo nítido dessa situação, se compararmos a distopia bíblica da ficção com a distopia efetiva promovida pelos talibã islâmicos.

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