20 de agosto de 2021

Haruki Murakami, os meses de julho a setembro do ano de 1Q84-2

「 天吾はもう一度目を閉じ、深呼吸をし、頭の中に適切な言葉を並べた。言葉の順序を入れ替え、イメージをより明確なものにした。リズムをより的確なものにした。
 彼は真新しい八十八個の鍵盤を前にしたウラジミール?ホロヴィッツのように、十本の指を静かに空中に波打たせた。それから心を定め、ワードプロセッサーの画面に文字を打ち込み始めた。
 夕暮れの東の空に月が二個並んで浮かんだ世界の風景を、彼は描いた。そこに生きている人々のことを。そこに流れている時間のことを。」
村上春樹, 「1Q84-2」(2009)
O clima ameno e o desabrochar da flor de cerejeira, enquadradores do painel primaveril pintado por Haruki Murakami no 1Q84 (2009), dão lugar ao calor e à humidade da temporada estival das chuvas. Aos meses de abril-junho do livro 1 seguem-se os meses julho-setembro do livro 2, publicados a poucos dias um do outro e a 1/4 de século da ação nuclear narrada no romance. O início das aulas mantém o seu percurso natural até alcançar o período de férias e a saga continua a um ritmo cada vez mais rápido, mas sem nos dar grandes pistas sobre o desenlace a operar-se no derradeiro trimestre do retábulo. As expetativas são grandes, como previsto, a comprovar por a+b a arte encantatória do grande mestre das letras nipónicas.

Lidos os livros, o intento de detetar um género novelesco único resulta num ato falhado. À imagem do ecletismo nascido com a revolução romântica, as regras dogmáticas impostas pelas poéticas clássicas são sistematicamente questionadas e postas em causa. O estrito respeito a um paradigma histórico ou teórico inviolável é ignorado e a liberdade criadora de formas complexas abre caminho inevitável à diversidade compositiva. As múltiplas correntes, tendências e movimentos literários pós-modernos não fogem a esta predisposição pluralista, sobretudo as ideadas após a queda do Muro de Berlim (1990) e da falência das ideologias reguladoras das sociedades humanas de pendor mais ou menos utópico.

O vocábulo estranho continua a ser um dos mais usados no relato, mas a originar hesitações frequentes no deslinde das singularidades descritas. O equilíbrio fantástico do natural/sobrenatural sofre uma grande instabilidade explicativa, até exigir a presença de novas leis desconhecidas da ciência para lograr uma compreensão total dos fenómenos observados, inserindo-se assim no universo maravilhoso da imaginação. O insólito deixa de ser visto como fruto dum enigma ocorrido no passado (causa) e passa a ser encarado como o ponto de partida dum mundo futuro distinto (efeito), com as duas luas a iluminarem o céu de amarelo e verde, com o povo pequeno a ocupar os nossos sonhos e pesadelos, com as crisálidas de ar a criarem as ninas como substitutas das mãs. O ano ordinário de 1994 perde a unicidade espácio-temporal e abre as portas de par em par ao ano extraordinário de 1Q84. Os protagonistas aceitam-no com reservas, os deuteragonistas olham-no sem pestanejar e penetramos no Realismo Mágico, em cujo seio a realidade é apenas uma

A técnica da narrativa alternada, comum à matriz romanesca antiga greco-bizantina, mantém-se inalterada, sequenciando os amores e aventuras de Aomame (capsímpares) e Tengo (capspares) de modo pendular e encadeado. As sínteses periódicas dos percursos de vida dos dois jovens recordam-nos o seu encontro fortuito aos dez anos de idade, logo seguido duma longa separação de duas décadas provocada pela força das circunstâncias, de se terem apercebido já adultos estarem apaixonados um pelo outro e de precisarem dum reencontro final para garantirem uma trajetória existencial comum. Os obstáculos/provas exigidas pelo modelo helénico referido terão o seu apogeu espectável no livro 3 da trilogia, para que o canónico happy end marque também ele a sua presença, tal como desejamos. As condições estão criadas, as dificuldades a superar avolumam-se, a vontade de vencer é incomensurável. As expetativas de leitura são mais fortes do que nunca. As funções catártica, estética e cognitiva da literatura está cumprida.

EPÍGRAFE
«Tengo voltou a fechar os olhos, respirou fundo e ordenou na sua cabeça as palavras que lhe faziam falta. Trocou-lhes a ordem  para que a imagem ganhasse mais nitidez e uma outra precisão. Por fim, afinou o ritmo.
À medida de Vladimir Horowitz diante das oitenta e oito teclas de um piano acabado de estrear, arqueou lentamente os dez dedos no ar. Assim que se sentiu pronto, desatou a teclar com determinação os carateres, até encher o ecrã do computador.
Descreveu um mundo onde, ao cair da noite, a oriente, duas luas apareciam suspensas no céu. As gentes que ali viviam. A passagem do tempo.»
Haruki Murakami, 1Q84-2 (Lx, CdL: 4, 92)

1 comentário:

  1. E a criatividade fantástica de Haruki Murakami continua a marcar presença neste segundo volume, como se depreende da resenha. E mais uma ocasião para uma grande lição de literatura sobre o autor e sua obra, cuja partilha muito agradeço, Prof.!

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