23 de fevereiro de 2022

Anne Brontë e as histórias verdadeiras com nomes inventados de Agnes Grey

"All true histories contain instruction; though, in some, the treasure may be hard to find, and when found, so trivial in quantity, that the dry, shrivelled kernel scarcely compensates for the trouble of cracking the nut. Whether this be the case with my history or not, I am hardly competent to judge. I sometimes think it might prove useful to some, and entertaining to others; but the world may judge for itself. Shielded by my own obscurity, and by the lapse of years, and a few fictitious names, I do not fear to venture; and will candidly lay before the public what I would not disclose to the most intimate friend."

Emily, Charlotte e Anne, as irmãs Brontë nascidas e criadas nas colinas do Yorkshire, o maior condado histórico da Inglaterra situado no nordeste do país, estrearam-se no universo das letras com um volume de Poems (1846) compostos pelas três e assinados com os pseudónimos masculinos de Currer, Ellis e Acton Bell. Esta última, a mais nova e menos conhecida, prosseguirá a sua curta carreira literária com dois romances de sucesso, o primeiro dos quais baseado na experiência pessoal da romancista como precetora, exercida entre 1839 e 1845 no seio duma família de Thorp Green Hall. Intitula-o Agnes Grey (1847), o nome da protagonista-narradora e quase alter ego da autora, numa edição conjunta partilhada com O Monte dos Vendavais de Emily Brontë.

O relato em prosa inaugural da jovem contadora de histórias está repartido por vinte cinco capítulos numerados, titulados e agrupados, segundo as normas estruturais próprias dum encadeamento narrativo clássico, linear e cronológico. Tudo começa no presbitério paterno da autobiografada e termina no presbitério conjugal da mesma. Entre a introdução e o epílogo canónicos, vão fluindo placidamente três sequências de dimensão diferente, formadas por avanços e recuos discursivos do seu percurso existencial, centradas em espaços educativos específicos, a Wellwood House dos Bloomfield, a Horton Lodge dos Murray e a Escola familiar das Grey, a mãe viúva e a filha casadoura. As memórias das entidades enunciativas esgotam-se ao fim de duas centenas de páginas e o destino de Anne-Agnes não tem mais nada a dizer.

Na criação artística, o factual e a ficção andam sempre de mão dada. Neste romance-novela-crónica-diário-notas seletas com nome de mulher, as histórias verdadeiras da autora são-nos reveladas com nomes inventadosOs pequenos/grandes ensinamentos fornecidos pelo relato têm de ser encontrados no interior da tal noz seca e encarquilhada referida no parágrafo de abertura. Assim se quebre a casca que os envolve. As provações sofridas pela filha de Patrick Brontë são transferidas mutatis mutandis para a filha de Richard Grey, os pastores anglicanos sem meios de fortuna casados por amor com duas descendentes de famílias endinheiradas. Os destinos reais e embuçados dos intervenientes ‒ vividos e decalcados nos alvores da era vitoriana (1837-1901) ‒ prosseguem a bom ritmo ao longo de todo o texto. Seria fastidioso elencá-los aqui um a um. Digamos tratar-se do testemunho duma precetora oitocentista malsucedida, na árdua tarefa de dar uma formação adequada de música, canto, desenho, francês, alemão e latim a um grupo de crianças mimadas, frívolas, ignorantes, irrequietas e desobedientes.

Lidos os desabafos traçados no livro como o objetivo explícito de não ocultar coisa alguma, acabo por esbarrar com um decalque involuntário e quase perfeito do síndrome da Gata Borralheira ou de qualquer outra heroína de literatura infantil. As tais que são sempre perseguidas por um batalhão de inimigos até à reta final do seu penoso percurso iniciático pelas aventuras/desventuras da vida. É nesse momento fulcral da sua existência em que encontra um príncipe encantado capaz de a libertar de todos os males passados e lhe oferece o happy ending merecido há muito esperado. O casamento com Edward Weston, o pároco rural que conhecera em tempos de formadora falhada, abre-lhe as portas para o novo estatuto de mulher casada e mãe de filhos. A mesma sorte não teve a arquiteta deste relato retrospetivo de sucessos pessoais verídicos cobertos com o tal manto diáfano da fantasia, por ter falecido na flor da idade, vítima aos 29 anos de tuberculose pulmonar, solteira e sem filhos, a revelar aos distraídos o quanto a vida real é bem mais dura do que a imaginada nos romances-novelas-crónicas-diários e até nas partes mais difíceis dos contos de fadas.

17 de fevereiro de 2022

A paixão dos livros

The Chess Players

«Cada libro, cada tomo que ves, tiene alma. El alma de quien lo escribió, y el alma de quienes lo leyeron y vivieron y soñaron con él. Cada vez que un libro cambia de manos, cada vez que alguien desliza la mirada por sus páginas, su espíritu crece y se hace fuerte.»
Carlos Ruíz Zafón, La sombra del viento (2001)

A paixão dos livros registada no meu universo de memórias é antigo. Antecedeu a minha capacidade de decifrar as palavras impressas a cheirar a tinta. Começou com a visão desses objetos mágicos que tinham o poder de contar histórias a quem os abria e desvendava. Revelavam-se nas vinhetas, tiras e pranchas publicadas todos os domingos n'O Primeiro de Janeiro. As bandas desenhadas d'O Janeirinho alimentaram-me a curiosidade de deslindar enredos mais elaboradas do que os revelados nos balões de pensamento ou de fala nas páginas dum jornal diário sediado no Porto.

A paixão dos livros surgiu-me numa altura em que me faltavam livros para pôr na estante. Numa primeira fase resolvi o problema com os livros que a biblioteca de turma ia adquirindo semana após semana. Leitura parca para quem as histórias fingidas impressas com letra de forma eram cada vez mais importantes. A solução surgiu sobre rodas com a biblioteca itinerante da Gulbenkian que periodicamente visitava o burgo e perfumava o ambiente com o aroma inconfundível da tinta dos livros novinhos em folha. Depois vieram as bibliotecas fixas, mas isso já são contas doutros rosários.

A paixão dos livros nunca me transformou num rato de biblioteca. Sempre preferi ter os meus próprios livros para ir preenchendo os tempos livres e os muitos espaços ainda disponíveis duma única estante. Isso não me impediu de recorrer de vez em quando à biblioteca pública que alimentou a minha voracidade juvenil. Depois de esgotar a esmo a leitura dos livros de capa azul, cor-de-rosa ou de qualquer outra cor e géneros ali depositados, passei a ser mais restritivo nas escolhas. E assim o gosto pela leitura indiferenciada se foi moldando ao gosto pessoal que hoje tenho.

A paixão dos livros de lazer levou-me à leitura dos livros de leitura obrigatória. E assim cheguei à situação atual de carecer de espaço nas estantes para pôr mais livros ou de espaços em casa para pôr mais estantes. As alternativas têm assentado arraiais nas segundas leituras e terão de ser seguidas por força das circunstâncias na supressão de todos os livros dispensáveis no final dum percurso académico ligado às letras. Manuais quase todos e pouco mais. Depois talvez me renda à leitura de livros digitais se entretanto me habituar à falta do papel a cheirar a tinta impressa.

A paixão dos livros inscrita no meu ADN de leitor espanta-se com a apatia sentida por alguns pela leitura. Um estudo recente revela que mais de metade da população portuguesa não lê livros. Para estes não-leitores, os direitos do leitor fixados por Daniel Pennac cifram-se no direito de não ler. Parca consolação para quem prescinde de saltar páginas, de deixar um livro a meio, de reler, de ler tudo, de querer ler ainda mais, de ler em todo e qualquer local, de ler uma frase aqui outra acolá, de ler em voz alta, de fazer segredo do que está a ler. Vistas bem as coisas, há quem se contente com bem pouco.

   

11 de fevereiro de 2022

Glóbulos coroados espalhados ao vento

Dente-de-leão  com  semente  vermelha  em  preto

Pandemia & Endemia

O SARS-CoV-2 causador da Covid-19 tem nome codificado de estrela distante numa galáxia perdida na infinidade do universo. Vá-se lá saber se por lá também haverá vírus com o aspeto dos existentes por estas bandas. Assemelha-se a outras formas globulares visíveis a olho nu, como a irregularidade dum pingo de tinta gravado numa superfície incolor, a intensidade do fogo de artifício numa noite festiva, a proliferação exponencial no meio ambiente como as bolas decorativas numa árvore de natal.

Esférico é também o dente-de-leão mas totalmente distinto das particularidades do SARS-CoV-2. É que enquanto o grânulo vegetal pode curar as mais diversas maleitas, o corpúsculo viral catalogado com nome de astro exótico não se coíbe em nada de matar em todas as frentes disponíveis. Razão teve a Larousse ao escolher como logótipo editorial o pissenlit, o taraxacum officinale da terminologia científica, imagem de marca associada  século e meio ao lema que o acompanha: Je sème à tout vent.

A fase pandémica já acabou em terras dinamarqueses e noutros países escandinavos. Por cá, a transição para a fase endémica far-se--á até à primavera. As partículas voadoras do SARS-CoV-2 continuam no ar mas passaram a comportar-se como um mero pompom de lã a provocar algumas alergias ligeiras no pico da estação fria e logo partem sem deixar marcas visíveis. Por via da vacinação massiva, a resistência duma bola de bilhar ter-se-á convertido na efemeridade duma bola de sabão. Nec plus, nec minus!

pingo — bilhar  pompom — covid - natal  sabão  artifício

7 de fevereiro de 2022

Marcel Proust, segunda busca do tempo perdido: à sombra das raparigas em flor

« Tout d'un coup, dans le petit chemin creux, je m'arrêtai touché au cœur par un doux souvenir d'enfance : je venais de reconnaître, aux feuilles découpées et bri-llantes qui s'avançaient sur le seuil, un buisson d'aubépines défleuries, hélas, de-puis la fin du printemps. Autour de moi flottait une atmosphère d'anciens mois de Marie, d'après-midi du dimanche, de croyances, d'erreurs oubliées. J'aurais voulu la saisir. Je m'arrêtai une seconde et Andrée, avec une divination char-mante, me laissa causer un instant avec les feuilles de l'arbuste. Je leur demandai des nouvelles des fleurs, ces fleurs de l'aubépine pareilles à de gaies jeunes filles étourdies, coquettes et pieuses Ces demoiselles sont parties depuis déjà long-temps , me disaient les feuilles. »
Marcel Proust, À l'ombre des jeunes filles en fleurs (1918)

A educação do herói-narrador-protagonista anónimo prossegue o seu caminho imparável através da pena de Marcel Proust, aplicada à escrita de À sombra das raparigas em flor (1918), a segunda etapa da busca do tempo perdido da infância-adolescência e do mais que virá nas cinco vindouras. O percurso recorrerá de novo às reminiscências involuntárias do relator e será feito tendo como ingredientes maiores de formação pessoal a literatura, a pintura e a música. A reunião de todos estes elementos valerá ao autor a conquista renhida do Prix Goncourt (1919), o mais cobiçado galardão atribuído ao melhor livro de prosa poética redigido em francês, tornando esta crónica da Belle Époque (1871-1914), num dos mais notáveis testemunhos dum certo cosmopolitismo cultural europeu produzido entre o final da Guerra Franco-Prussiana e o eclodir da Primeira Guerra Mundial.

À imagem do lanço inicial da saga, o seguinte está dividido em partes, reduzido agora a duas. Mesmo assim, guardam entre si algumas semelhanças de percurso na metodologia adotada. A ação central traslada-se de Combray para Paris e fixa-se depois em Balbec. O núcleo dos dramas representados passa da história dum amor de Swann para o círculo social de Mme Swann. As digressões sobre os nomes de terras e países mantêm-se a um ritmo vivaz, alimentado pela imaginação criativa do repórter, sem nunca perder de vista o fio condutor do discurso unificador da exposição, animado pelo grupo divertido das jovens veraneantes da estação balnear normanda. O cenário conserva em palco o figurino social já nosso conhecido das fases anteriores do relato. O destaque dado às famílias catapultadas para um primeiro plano partilha um protagonismo efetivo com uma miríade de celebridades reais, fingidas, disfarçadas ou inventadas, trazidas ao mundo anquilosado de príncipes, duques, marqueses, condes e barões de pacotilha, a cumprirem todos eles a função compositiva de meras personagens decorativas. Ecos aristocráticos distantes, oriundos da Monarquia de Julho e do Segundo Império, quando a Terceira República já era mestra e senhora sem trono, coroa, cetro, brasões ou títulos para ostentar à face da lei em vigor.

A incursão do jovem memorialista na esfera labiríntica das vivências sentimentais faz-se no Entorno de Mme Swann, também conhecida por Odette de Crécy, detentora de duvidosa reputação na alta-roda parisiense e mãe de Gilberte Swann. Aos encontros fortuitos nos Champs-Élysées sucedem-se as visitas frequentes na residência dos pais. É neste ambiente de pretenso requinte intelectual e manifesta frivolidade mundana que o alter ego idealizado do cronista externo, travestido de dandy francês de virar de século, se torna mais visível aos olhos do leitor, mesmo do mais distraído, e se mantém presente em toda a busca frenética de tempos perdidos, qual Bildungsroman ou romance de aprendizagem de vida. O convívio repetido dos dois acaba por afastá-los pouco a pouco um do outro até à separação total. Inexoravelmente, como seria de esperar. O processo de crescimento prossegue o seu andarilhar autónomo, facultando a cada um dos heróis idílicos a leitura de páginas alternativas de obras distintas. Que saia de cena quem não é de cena e fique quem nela couber.

Dois anos separam as memórias evocadas nos dois blocos deste painel da heptalogia proustiana. O beau monde dos salões de moda de Paris é trocado pelo petit monde à part do Grand Hotel de Balbec. A Gilberte Swann dos jogos infantis é descartada de vez, sem apelo nem agravo, e é rendida nos devaneios adolescentes por Albertine Simonet. Os Nomes de países: o país marcam, assim, a transição da meninice-juventude inocente para a idade adulta amadurecida do emissor interno das histórias reveladas à sombra dum verdadeiro ramalhete de flores, formado pelas jovens desportivas e burguesas que emprestam o nome ao livro. Uma órbita de influência de duração expectável a preparar o advento da terceira jornada viandante da relação retrospetiva em sete longas estafetas, aquela que será regida dos lados de Guermantes e de tudo o que à ribalta chegar.

Lido e relido mais um tomo desta obra monumental, deste vastíssimo repositório de longas tiradas descritivas de perder o fôlego, repletas de pequenas e grandes intrigas de bastidores, ocorridas na passagem do século ⅩⅠⅩ para o ⅩⅩ, voltei a experimenta a vontade imperiosa de parar um pouco, de respirar fundo, de ganhar ânimo de retomar a leitura depois do repouso merecido. Árdua tarefa a desenvolver no decorrer deste 2022, l' année Proust, em que se comemoram os 150 anos do seu nascimento e os 100 da sua morte. Duplo aniversário que me fará encetar a árdua/motivadora tarefa de prosseguir-concluir a aventura há muito planeada/adiada de descoberta/redescoberta dum dos mais completos e celebrados retábulos literários das letras francesas, europeias e universais.

1 de fevereiro de 2022

Fevereiro das penitências e purificações

FEBRARIVS
Mosaico dos  meses do ano (séc. Ⅲ  EC)

Fevereiro, s. Do lat. fĕbrārĭu- (Appendix Probi, N.º 208, e Inscrições, segundo Gaffiot), forma vulgar de fĕbrŭārĭu-, «fevereiro», propriamente: fĕbrārĭus (mensis), «o mês das purificações», o último do ant. ano romano: o adj. deriva do v. februāre, «purificar», fa-zer penitências religiosas». Assim, segundo Paulo Festo (75, 23), «Februarius mensis dictus quod tum, i.e. extremo mense anni, populus februaretur, i.e. lustraretur ac purga-retur, uel a Iunone februata quam alii Februalem, Romani Februlim uocant, quod ipsi eo mense sacra fiebant eiusque feriae erant Lupercalia, quo die mulieres februabantur a Lupercis amiculo Iunonis, i.e. pelle caprina, quam ob caufam is quoque dies februatus appellabatur. Quaecumquedenique purgamenti causa in quibusque sacrificiis adhibentur, februs appelantur. Id uero, quod purgatur, dicitur februatum»...
J. P. Machado, Dicionário etimológico da língua portuguesa 
 (Lisboa: Horizonte, 1977; Ⅲ, 41b.)

Quando o calendário romano criado lendariamente por Rómulo ditava as suas normas de contagem do tempo, o ano começava em março e terminava em dezembro, num total de 10 meses e 304 dias. O acerto do ciclo solar fazia-se com a inclusão de meses e dias intercalares em datas precisas, definidas pelo pontĭfīces maxĭmus. Os 61 dias e 1/4 em falta foram distribuídos por janeiro e fevereiro, com que então acabava o ano e depois passou a iniciá-lo.

Fevereiro, o mais pequeno mês do ano e único a ganhar um dia extra de 4 em 4 anos, deveu o nome a Fébruo, a divindade sabina ou etrusco-itálica da «morte» e da «pureza». Simbolizava a mudança de estação e celebrava-se durante as Lupercais, festivais rituais de purificação (lat. fĕbrŭas), celebrados em honra de Luperca, a loba que amamentou os gémeos Rómulo e Remo, ocasião para se oferecerem sacrifícios expiatórios aos mortos para assim os apaziguar.

quem associe o februārĭus mensis a Fébris, a deusa romana da «febre», aproximando-o desse modo da atual função catártica do Carnaval. A transpiração causada pela subida de temperatura em resposta a uma perturbação orgânica seria transposta para os derradeiros folguedos permitidos antes da Quaresma. Purgante, lavagem, processo purificador com fortes raízes pagãs ao agrado de todos, numa etimologia certeira de cada cor seu paladar. Ave! 

LUPERCA
Cabeça de lobo, bronze romano, 1-100 EC